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23
Ago15

A teoria das janelas partidas

por Hilton Besnos

Há alguns anos, a Universidade de Stanford (EUA), realizou uma experiência de psicologia social. Deixou duas viaturas idênticas, da mesma marca, modelo e até cor, abandonadas na via pública. Uma no Bronx, zona pobre e conflituosa de Nova York e a outra em Palo Alto, uma zona rica e tranquila da Califórnia. Duas viaturas idênticas abandonadas, dois bairros com populações muito diferentes e uma equipe de especialistas em psicologia social estudando as condutas das pessoas em cada local.

Resultou que a viatura abandonada em Bronx começou a ser vandalizada em poucas horas. Perdeu as rodas, o motor, os espelhos, o rádio, etc. Levaram tudo o que fosse aproveitável e aquilo que não puderam levar, destruíram.Contrariamente, a viatura abandonada em Palo Alto manteve-se intacta.

Mas a experiência em questão não terminou aí. Quando a viatura abandonada em Bronx já estava desfeita e a de Palo Alto estava há uma semana impecável, os pesquisadores partiram um vidro do automóvel de Palo Alto. O resultado foi que se desencadeou o mesmo processo que o de Bronx, e o roubo, a violência e o vandalismo reduziram o veículo ao mesmo estado que o do bairro pobre. Por quê que o vidro partido na viatura abandonada num bairro supostamente seguro, é capaz de disparar todo um processo delituoso? Evidentemente, não é devido à pobreza, é algo que tem que ver com a psicologia humana e com as relações sociais.

Um vidro partido numa viatura abandonada transmite uma idéia de deterioração, de desinteresse, de despreocupação. Faz quebrar os códigos de convivência, como de ausência de lei, de normas, de regras. Induz ao “vale-tudo”. Cada novo ataque que a viatura so fre reafirma e multiplica essa idéia, até que a escalada de atos cada vez piores, se torna incontrolável, desembocando numa violência irracional.

Baseados nessa experiência, foi desenvolvida a ‘Teoria das Janelas Partidas’, que conclui que o delito é maior nas zonas onde o descuido, a sujeira, a desordem e o maltrato são maiores. Se se parte um vidro de uma janela de um edifício e ninguém o repara, muito rapidamente estarão partidos todos os demais. Se uma comunidade exibe sinais de deterioração e isto parece não importar a ninguém, então ali se gerará o delito.

Se se cometem ‘pequenas faltas’ (estacionar em lugar proibido, exceder o limite de velocidade ou passar com o sinal vermelho) e as mesmas não são sancionadas, então começam as faltas maiores e delitos cada vez mais graves.Se se permitem atitudes violentas como algo normal no desenvolvimento das crianças, o padrão de desenvolvimento será de maior violência quando estas pesso as forem adultas.

Se os parques e outros espaços públicos deteriorados são progressivamente abandonados pela maioria das pessoas, estes mesmos espaços são progressivamente ocupados pelos delinquentes.

A Teoria das Janelas Partidas foi aplicada pela primeira vez em meados da década de 80 no metrô de Nova York, o qual se havia convertido no ponto mais perigoso da cidade. Começou-se por combater as pequenas transgressões: lixo jogado no chão das estações, alcoolismo entre o público, evasões ao pagamento de passagem, pequenos roubos e desordens. Os resultados foram evidentes. Começando pelo pequeno conseguiu-se fazer do metrô um lugar seguro.

Posteriormente, em 1994, Rudolph Giuliani, prefeito de Nova York, baseado na Teoria das Janelas Partidas e na experiência do metrô, impulsionou uma política de ‘Tolerância Zero’. A estratégia consistia em criar comunidades limpas e ordenadas, não permitindo transgressões à Lei e às norm as de convivência urbana. O resultado prático foi uma enorme redução de todos os índices criminais da cidade de Nova York.

A expressão ‘Tolerância Zero’ soa a uma espécie de solução autoritária e repressiva, mas o seu conceito principal é muito mais a prevenção e promoção de condições sociais de segurança. Não se trata de linchar o delinqüente, pois aos dos abusos de autoridade da polícia deve-se também aplicar-se a tolerância zero.

Não é tolerância zero em relação à pessoa que comete o delito, mas tolerância zero em relação ao próprio delito.Trata-se de criar comunidades limpas, ordenadas, respeitosas da lei e dos códigos básicos da convivência social humana.

Essa é uma teoria interessante e pode ser comprovada em nossa vida diária, seja em nosso bairro, na rua onde vivemos.

A tolerância zero colocou Nova York na lista das cidades seguras.

Esta teoria pode também explicar o que acontece aqui no Brasil com corrupção, impunidade, amoralidade, criminalidade, vandalismo, etc.

Reflita sobre isso!

Fonte: acesse o artigo

http://www.manhattan-institute.org/pdf/_atlantic_monthly-broken_windows.pdf

  The police and neighborhood safety BROKEN WINDOWS by JAMES Q WILSON AND GEORGE L. KELLING
James Q. Wilson is Shattuck Professor of Government at Harvard and author of Thinking About Crime. George L. Kelling, formerly director of the evaluation field staff of the Police foundation, is currently a research fellow at the John F Kennedy School of Government Harvard

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23
Ago15

Violência urbana

por Hilton Besnos

140311-VitorTeixeira

Pesquisa vasculha território obscuro da internet: as comunidades que clamam por violência policial, linchamentos, mortes dos “esquerdistas” e novo golpe militar

Por Patrícia Cornils, entrevistando Fábio Malini | Imagem: Vitor Teixeira

No dia 5 de março o Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cibercultura (Labic), da Universidade Federal do Espírito Santo, publicou um mapa de redes de admiradores das Polícias Militares no Facebook. São páginas dedicadas a defender o uso de violência contra o que chamam de “bandidos”, “vagabundos”, “assaltantes”, fazer apologia a linchamentos e ao assassinato, defender policiais, publicar fotos de pessoas “justiçadas” ou mortas violentamente, vender equipamentos bélicos e combater os direitos humanos.

Para centenas de milhares de seguidores dessas páginas, a violência é a única mediadora das relações sociais, a paz só existe se a sociedade se armar e fizer justiça com as próprias mãos, a obediência seria o valor supremo da democracia. Dentro dessa lógica, a relação com os movimentos populares só poderia ser feita através da força policial. Qualquer ato que escape à ordem ou qualquer luta por direitos é lido como um desacato à sociedade disciplinada. Um exemplo: no sábado, dia 8 de março, a página “Faca na Caveira” publicou um texto sobre o Dia Internacional das Mulheres no qual manda as feministas “se foderem”. Em uma hora, recebeu 300 likes. Até a tarde de domingo, 1473 pessoas haviam curtido o texto.

Abaixo o professor Fábio Malini explica como fez a pesquisa e analisa o discurso compartilhado por esses internautas. “O que estamos vendo é só a cultura do medo midiático passando a ter os seus próprios veículos”, diz ele. Explore as redes neste link.

140311-Ultraconservadores

Como você chegou a esse desenho das redes? O que ele representa?

TEXTO-MEIO

É um procedimento simples em termos de pesquisa. O pesquisador cria uma fanpage no Facebook e passa a dar “like” num conjunto de fanpages ligada à propagação da violência. Em seguida, usamos uma ferramenta que identifica quais os sites que essas fanpages curtem. E, entre elas, quais estão conectadas entre si. Se há conexão entre uma página com outra, haverá uma linha. Se “Faca na Caveira” curte “Fardado e Armados˜há um laço, uma linha que as interliga. Quando fazemos isso para todas as fanpages, conseguimos identificar quais são as fanpages da violência (bolinhas, nós) mais conectadas e populares. Isso gera um grafo, que é uma representação gráfica de uma rede interativa. Quanto maior é o nó, mais seguida é a página para aquela turma. No grafo, “Polícia Unida Jamais será vencida” é a página mais seguida pela rede. Não significa que ela tem mais fãs. Significa que ela é mais relevante para essa rede da violência. Mas a ferramenta de análise me permite ver mais: quem são as páginas mais populares no Facebook, o que elas publicam, o universo vocabular dos comentários, a tipologia de imagens que circula etc.

O que você queria ver quando pesquisou esse tema? E o que achou de mais interessante?

Pesquisei durante apenas uma semana para testar o método de extração de dados. Descobri que o Labic, laboratório que coordeno, pode ajudar na construção da cultura de paz nesse país, desvelando os ditos dessas redes, que estão aí, lotadas de fãs e públicas no Facebook. Assustei-me em saber a ecologia midiática da repressão no Facebook, em função da agenda que esses sites estabelecem.

Primeiro há um horror ao pensamento de esquerda no país. Isso aparece com inúmeros textos e imagens que satirizam qualquer política de direitos humanos ou ligadas aos movimentos sociais. Essas páginas funcionam como revides à popularização de temas como a desmilitarização da Polícia Militar ou textos de valorização dos direitos humanos. Atualmente, muitas dessas páginas se articulam em função da “Marcha pela Intervenção Militar”. Um de seus maiores ídolos é o deputado Jair Bolsonaro.

Após os protestos no Brasil, a estrutura de atenção dos veículos de comunicação de massa se pulverizou, muito tráfego da televisão está escoando para a internet, o que faz a internet brasileira se tornar ainda mais “multicanal”, com a valorização de experiências como Mídia Ninja, Rio na Rua, A Nova Democracia, Outras Palavras, Revista Fórum, Anonymous, Black Blocs. São páginas muito populares. Mas não estão sozinhas. Há uma guerra em rede. E o pensamento do “bandido bom, bandido morto” hoje se conformou em votos. Esse pensamento foi capaz de construir redes sociais em torno dele.

A despolitização, a corrupção, os abusos de poder, a impunidade, estão na raiz da força alcançada por essas redes da violência e da justiça com as próprias mãos. E não tenho dúvida: essas redes, fortes, vão conseguir ampliar seu lastro eleitoral. Vão ajudar na eleição de vários políticos “linha dura”. Em parte, o crescimento dessas redes se explica também em função de forças da esquerda que passaram a criminalizar os movimentos de rua e ficaram omissas a um conjunto de violações de direitos humanos. O silêncio, nas redes, é resignação. O que estamos vendo é só a cultura do medo midiática passando a ter os seus próprios veículos de comunicação na rede.

Você escreveu que “é bom conhecer e começar a minerar todos os conteúdos que são publicadas nelas.” Por que?

Porque é preciso compreender a política dessas redes e seus temas prioritários. Instituir um debate por lá e não apenas ficar no nosso mundo. É preciso dialogar afirmando que uma sociedade justa é a que produz a paz, e não uma sociedade que só obedece ordens. Estamos numa fase de mídia em que se calar para não dar mais “ibope” é uma estratégia que não funciona. É a fala franca, o dito corajoso, que é capaz de alterar (ou pelo menos chacoalhar) o discurso repressor.

É interessante, ao coletarmos e minerarmos os dados, notar que muitas dessas páginas articulam um discurso de Ode à Repressão com um outro pensamento: o religioso, cujo Deus perdoa os justiceiros. Isso se explica porque ambos são pensamentos em que o dogma, a obediência, constituem valores amplamente difundidos. Para essas redes, a defesa moral de uma paz, de um cuidado de si, viria da capacidade de os indivíduos manterem o estado das coisas sem qualquer questionamento, qualquer desobediência.

No lugar da Política enfrentar essas redes, para torná-las minoritárias e rechaçadas, o que vemos? Governantes que passam a construir seus discursos e práticas em função dessa cultura militarizada, dando vazão a projetos que associam movimentos sociais a terrorismo. Daí há uma inversão de valores: a obediência torna-se o valor supremo de uma democracia. E a política acaba constituindo-se naquilo que vemos nas ruas: o único agente do Estado em relação com os movimentos é a polícia.

O grafo mostra as relações entre os diversos nós dessa rede. Mas e se a gente quiser saber o que essas redes conversam? As PMs estão no centro de vários debates importantes hoje: o tema da desmilitarização. A repressão às manifestações. O assassinato de jovens pobres, pretos, periféricos. Esses nós conversam sobre essas coisas? Em que termos?

Sim, esses nós se republicam. Tal como páginas ativistas se republicam, tais como páginas de esporte se republicam. Todo ente na internet está constituindo numa rede para formar uma perspectiva comum. As ferramentas para coletar essas informaçoes públicas estão muito simplificadas e na mão de todos. Na tenho dúvida que as abordagens científicas das Humanidades serão cada vez mais centrais, pois a partir de agora o campo das Humanidades lidará com milhões de dados. É uma nova natureza que estamos vendo emergir com a circulação de tantos textos, imagens, comportamentos etc.

Você escreveu que “os posts das páginas, em geral, demonstram o processo de construção da identidade policial embasada no conceito de segurança, em que a paz se alcança não mediante a justiça, mas mediante a ordem, a louvação de armamentos e a morte do outro.” Pode dar exemplos de como isso aparece? E por que isso é grave? Afinal, na visão dos defensores e admiradores da polícia, as posições que defendem dariam mais “paz” à sociedade.

Sábado, 8 de março, foi o Dia Internacional da Mulher. Uma das páginas, a Faca na Caveira, deu parabéns às mulheres guerreiras. Mas mandaram as feministas se foderem. O post teve 300 likes em menos de meia hora e na tarde de domingo tinha 1473 likes. A paz só será alcançada com ordem e obediência, dizem. No fundo, essas redes revelam-se como repressoras de qualquer subjetividade inventiva. Por isso, são homofóbicas e profundamente etnocêntricas de classes. É uma espécie de decalque do que pensa a classe média conectada no Brasil, que postula que boné de “aba reta” em shopping é coisa da bandidagem.

Em Vitória, onde resido, em dezembro de 2013, centenas de jovens que curtiam uma roda de funk nas proximidade de um shopping tiveram que entrar nesse recinto para fugir da repressão da polícia, que criminaliza essa cultura musical. Imediatamente foi um “corre-corre” no centro comercial. Os jovens foram todos colocados sentados, sem camisa, no centro da Praça de Alimentação. Em seguida, foram expulsos em fila indiana pela polícia, sob os aplausos da população. Depois, ao se investigar o fato, nenhum deles tinha qualquer indício de estar cometendo crime. Essa cultura do aplauso está na rede e é forte. É um ódio à invenção, à diferença, à multiplicidade. É por isso que a morte é o elemento subjetivo que comove essa rede. Mostrar possíveis criminosos mortos, no chão, com face, tórax ou qualquer outro parte do corpo destruída pelos tiros, é um modo de reforçar a negação da vida.

Essas redes conversam com outras redes não dedicadas especificamente à questão das PMs? Vi, por exemplo, que tem um “Dilma Rousseff Não”, um “Caos na Saúde Pública” e um “Movimento Contra Corrupção”. Que ligações as pessoas ali estabelecem entre esses temas?

Sim, são páginas que se colocam no campo da direita mais reacionária do país. Mas isso também é um índice da transmutação do conservadorismo no Brasil. Infelizmente, o controle da corrupção se tornou um fracasso. Essa condição fracassada alimenta a despolitização. E a despolitização é o combustível para essas páginas. Mas a despolitização não é apenas um processo produzidos pelos “repressores”, mas por sucessivos governos mergulhados em escândalos e que são tecidos por relações políticas absolutamente cínicas em nome de alguma governabilidade.

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23
Ago15

Um futuro a reinventar

por Hilton Besnos
Sisse Brimberg & Cotton Coulson/Keenpress/Getty
 

Na América e na Europa, a crise económica cada vez se assemelha mais a uma crise existencial. Há soluções para construir um outro futuro, nota o sociólogo francês Alain Touraine, mas os políticos não sabem aproveitá-las.

 

 

As três crises. Esta fórmula parece artificial, mas não é. Por trás da crise financeira, estalou uma crise monetária e económica que revelou ser uma crise política. E os nossos países europeus mostraram-se incapazes de pensar e de organizar o seu próprio futuro, facto que constitui uma terceira crise.

A primeira, a mais visível, foi a crise financeira que culminou em setembro de 2008 com o fecho do banco Lehman Brothers em Nova Iorque. Esta crise foi mais grave nos EUA e na Grã-Bretanha, mas também na Europa continental. Em contrapartida, depressa outros países se restabeleceram e chegaram mesmo a atingir elevados níveis de crescimento.

Houve quem julgasse a crise acabada e a retoma assegurada, quando, no início de 2010, estalou uma crise, sobretudo europeia, orçamental e económica. Tudo começou com um imprevisto: a Grécia estava à beira da falência. Descobrimos então a gravidade dos nossos males: a enormidade dos défices orçamentais, o rápido crescimento da dívida pública, a incapacidade quase generalizada de fazer descer os elevados números do desemprego.

Esta crise é, acima de tudo, uma crise política. É uma crise que manifesta a impotência dos países europeus em gerir a sua economia, em diminuir a despesa pública, em fazer crescer as receitas fiscais e, sobretudo, em relançar o crescimento sem o qual não haverá qualquer recuperação orçamental.

Um modelo ocidental de conquista e imponente

A terceira crise que assola o ocidente é a ausência de um projeto civilizacional, facto que ainda se compreende menos. Durante séculos, o ocidente europeu concentrou todos os seus recursos nas mãos de uma elite dirigente de monarcas absolutos e, mais tarde, do grande capital.

Conseguiu igualmente conquistar, em poucos séculos, uma grande parte do mundo. Mas este modelo de conquista assenta sobre duas situações perigosas. A primeira é o facto de toda a sociedade estar brutalmente submetida ao poder dos dirigentes. Dos súbditos de sua majestade aos operários fabris e aos colonizados, às mulheres e às crianças, todas as faixas da população ficaram sujeitas a formas de dominação extrema. O modelo ocidental foi, simultânea e indissoluvelmente, um modelo de conquista e um modelo imponente.

A sua outra fraqueza foi ter servido para a formação de nações que estiveram em guerra durante séculos, até que a Europa do século XX se lançou em duas guerras mundiais e numa vaga de regimes totalitários. As lutas entre nações europeias só terminaram com a hegemonia americana e a criação de uma União Europeia assente no enfraquecimento dos Estados. O sistema social europeu foi-se enfraquecendo mais lentamente.

Uma Europa sem projeto de vida

Os povos derrubaram monarcas, os assalariados conquistaram direitos sociais, as colónias libertaram-se, as mulheres conquistaram direitos, mesmo que não tenham conseguido acabar com a desigualdade que as vitima. Mas depois da Belle époque, dos anos de democracia social da segunda metade do século XX, a Europa, libertada dos seus maiores sofrimentos e das suas maiores loucuras, encontra-se sem modelo de desenvolvimento, sem projeto de vida.

São da Europa as grandes vozes que se fizeram ouvir nestes últimos séculos, mas hoje a Europa está silenciosa, vazia, sobretudo por não ter conseguido, até à data, substituir o seu antigo modelo de modernização. Mas isso não é impossível e já conhecemos os grandes temas que deveriam ser prioritários para o próximo século: os ecologistas convenceram-nos a conciliar os direitos da economia com os direitos do ambiente; os movimentos culturais revelaram-nos que não basta conquistar o governo da maioria e que também é preciso respeitar os direitos das minorias.

As mulheres, de uma forma mais privada do que pública, começaram a construir uma sociedade cujo principal objetivo é reconciliar os opostos e privilegiar a integração interior em detrimento da conquista exterior. Estes grandes projetos, no entanto, que deveriam imperiosamente transformar-se em projetos políticos, têm mais apoio da opinião pública do que dos governos.

A impotência política e intelectual: a causa principal da crise

Embora seja possível inventar um futuro, já não temos instrumentos políticos e, sobretudo, intelectuais para sairmos das crises cujas consequências mais negativas temos tentado apenas atenuar. O capital financeiro é o único setor da vida económica que se restabeleceu depressa e bem. Simultaneamente, a desigualdade social continua a aumentar, a economia de produção saiu da Europa e o debate político continua o mesmo em todos os países. Não podemos dizer que a nossa impotência política e intelectual seja uma consequência da crise. Ela é a sua causa principal. Este facto indica claramente onde se encontram as nossas prioridades.

Não existe uma solução para a crise económica sem uma solução para a crise política e cultural. É urgente o restabelecimento político e, sobretudo, o renascimento intelectual e cultural. A Bélgica e a Holanda foram assolados por um populismo chauvinista e xenófobo. A vida política em Itália e em França está arruinada e tem de ser totalmente reconstruída. Perante o papel dominante dos EUA, carecemos da vitória de Barack Obama sobre um partido republicano reacionário e pouco inteligente.

Foram os melhores economistas que nos explicaram a importância primordial das soluções sociais e políticas para ultrapassar a crise económica, mas os políticos dão mostras de ainda não terem entendido. Não podemos continuar a avançar devagarinho, pois nem sequer sabemos se estamos a avançar ou a recuar. Precisamos urgentemente de imaginar, pensar e construir o nosso futuro, afastando a névoa e o silêncio que nos impede de descobrir os instrumentos políticos indispensáveis à construção desse futuro.

Fonte: artigo retirado de

http://www.presseurop.eu/pt/content/article/352271-um-futuro-reinventar

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17
Ago15

 

A DO DIA. Não, não é a corrupção que incomoda a classe dominante. Inclusive muitos só chegaram lá graças às pequenas médias e grandes corrupções, escondidinhas nas gavetas do fundo das histórias familiares, naqueles cofres e caixas de pandora às quais ninguém tem acesso… Então, a questão não é a corrupção, mas o empoderamento da classes que as dominantes consideram subalternas, problemáticas, menores, povinho, enfim. O que se vê hoje no Brasil sequer é uma contestação política séria, mas a volta da manutenção de um status quo que se sente ameaçado. Porque acostumou-se e foi acostumada ao longo da história a não compartilhar nada. A grande crise que vivemos hoje no Brasil é a luta interminável, injusta e cruel entre PREDADORES X PREDADOS.

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16
Ago15

O Brasil da elite foi cooptado historicamente pelos portugueses, após pelos franceses e, por último pelos norte-americanos. Dentro desse cenário, buscamos construir muito mais identidade com a Europa e com a América do Norte do que com os nossos vizinhos latino-americanos. Dentro de tal quadro, as classes economica e socialmente ascendentes buscaram sempre modelos que negassem ou minimizassem a origem “Casa Grande e Senzala” de Gilberto Freyre, embora ambas – casa grande e senzala – tivessem ajudado a moldar o inconciente coletivo de uma nação multi-tudo (multicultural, multisocietária, multi-étnica, multipartidária, multireligiosa).  O que foi chamado de “geléia real” por Gilberto Gil continua sendo a grande diferença que nos torna mais tolerantes, mais criativos, mais adaptáveis que uma infinidade de povos.

Paralelamente, ao buscarmos modelos europeus e/ou anglosaxonicos, findamos por nos afastar de nossos vizinhos latino-americanos. Sabemos muito bem criar estereótipos acerca de nossos vizinhos de lengua hispânica, digamos assim. A consideração de que somos o único povo da América Latina a falar português, e não espanhol, é relevante. Afinal, somos mais de duzentos milhões que praticamos diuturnamente uma língua que não é a dos outros sítios do continente. Isso explica esse afastamento cultural? Creio que sim e que não.  No entanto, seja qual for a discussão a respeito do assunto, nossas referências culturais são bem mais americanas e inglesas do que propriamente latinas, embora nosso comportamento esteja muito distante da Europa e dos Estados Unidos. Como padrão das classes dominantes e que possuem acesso aos meios culturais, econômicos e financeiros, preferimos inegavelmente o sorry, o enchantée, o ne me quitte pas, o envyroment e o profile ao gracias, mucho gusto, às ramblas; mais fácil encontrarmos moonlight serenade nas novelas do que algum tango ou bolero. São raríssimas as excessões, e a trilha sonora da novela A Preferida, da Rede Globo, foi uma delas.

Pois bem, seguindo essas mesmas referências, produções artísticas e culturais latinas poucas vezes obtém o espaço merecido nas nossas encantadoras e mercantilizadas midias. Deste ponto de vista, porque conhecer Fito Paez, se Beyoncée vende bem mais, porque escutar  La Negra quando um rap rastaquera qualquer produzido e enlatado em USA é bem mais rentável do ponto de vista da domesticação das mentes. Claro, se Fito Paez ou se Bajofondo tivessem pedigrée americana ou inglesa, sem dúvida já teríamos tido mega-eventos (com a indefectível presença de Ivete Sangalo) televisionados para todo o país pela Rede Globo, óbvio. Se Ricardo Darín fosse americano, ele não seria a surpresa na qual se constitui sendo protagonista de Segredo dos Seus Olhos, produção argentina. Muitos mais já o conheceriam através do Filho da Noiva, de Kamchatka ou do Clube da Lua. No caso, já teria sido entrevistado pelo Programa do Jô, feito uma pontinha na novela das oito e mesmo teria conversado com a Marília Gabriela, no GNT. Exagero, without doubt no.

O Segredo dos seus olhos segue uma tradição de vários filmes latino-americanos que abordam temas por vezes bastante complicados com uma sensibilidade ímpar. Os roteiros não deliram, não existe grandes produções, menos ainda efeitos especiais espetaculares e espetaculosos. Não somente a Argentina tem grandes atores. Histórias que poderiam ocorrer conosco e que, por isso mesmo, nos colocam frente a frente às nossas instabilidades, comédias e dramas são a grande receita da cultura cinematográfica latina. Que não se busquem super-heróis, grandes armadilhas e efeitos grandiloquentes, menos ainda justiceiros; mesmo o sexo é contido, não facilmente comercializável. É preciso abandonar essa posição antilatina, essa comiseração na qual nos afundamos. Es necesario que las peliculas de latinoamerica sean miradas con ojos de verdad, de encantamento.

Ganharíamos todos.

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FONTE FORUM REVISTA
http://revistaforum.com.br/blog/2013/12/sonho-americano-conheca-10-fatos-chocantes-sobre-os-eua/
 
13/12/2013 5:18 pm
Sonho americano? Conheça 10 fatos chocantes sobre os EUA
 
Maior população prisional do mundo, pobreza infantil acima dos 22%, nenhum subsídio de maternidade, graves carências no acesso à saúde… bem-vindos ao “paraíso americano”

Por Pragmatismo Político

(Imagem: Divulgação)

Os EUA costumam se revelar ao mundo como os grandes defensores das liberdades, como a nação com a melhor qualidade de vida do planeta e que nada é melhor do que o “american way of life” (o modo de vida americano). A realidade, no entanto, é outra. Os EUA também têm telhado de vidro como a maioria dos países, a diferença é que as informações são constantemente camufladas. Confira abaixo 10 fatos pouco abordados pela mídia ocidental.

1. Maior população prisional do mundo

Elevando-se desde os anos 80, a surreal taxa de encarceramento dos EUA é um negócio e um instrumento de controle social: à medida que o negócio das prisões privadas alastra-se como uma gangrena, uma nova categoria de milionários consolida seu poder político. Os donos destas carcerárias são também, na prática, donos de escravos, que trabalham nas fábricas do interior das prisões por salários inferiores a 50 cents por hora. Este trabalho escravo é tão competitivo, que muitos municípios hoje sobrevivem financeiramente graças às suas próprias prisões, aprovando simultaneamente leis que vulgarizam sentenças de até 15 anos de prisão por crimes menores como roubar chicletes. O alvo destas leis draconianas são os mais pobres, mas, sobretudo, os negros, que representando apenas 13% da população norte-americana, compõem 40% da população prisional do país.

2. 22% das crianças americanas vive abaixo do limiar da pobreza.

Calcula-se que cerca de 16 milhões de crianças norte-americanas vivam sem “segurança alimentar”, ou seja, em famílias sem capacidade econômica para satisfazer os requisitos nutricionais mínimos de uma dieta saudável. As estatísticas provam que estas crianças têm piores resultados escolares, aceitam piores empregos, não vão à universidade e têm uma maior probabilidade de, quando adultos, serem presos.

3. Entre 1890 e 2012, os EUA invadiram ou bombardearam 149 países.

O número de países nos quais os EUA intervieram militarmente é maior do que aqueles em que ainda não o fizeram. Números conservadores apontam para mais de oito milhões de mortes causadas pelo país só no século XX. Por trás desta lista, escondem-se centenas de outras operações secretas, golpes de Estado e patrocínio de ditadores e grupos terroristas. Segundo Obama, recipiente do Nobel da Paz, os EUA conduzem neste momente mais de 70 operações militares secretas em vários países do mundo.

O mesmo presidente criou o maior orçamento militar norte-americano desde a Segunda Guerra Mundial, superando de longe George W. Bush.

4. Os EUA são o único país da OCDE que não oferece qualquer tipo de subsídio de maternidade.

Embora estes números variem de acordo com o Estado e dependam dos contratos redigidos por cada empresa, é prática corrente que as mulheres norte-americanas não tenham direito a nenhum dia pago antes ou depois de dar à luz. Em muitos casos, não existe sequer a possibilidade de tirar baixa sem vencimento. Quase todos os países do mundo oferecem entre 12 e 50 semanas pagas em licença maternidade. Neste aspecto, os Estados Unidos fazem companhia à Papua Nova Guiné e à Suazilândia.

5. 125 norte-americanos morrem todos os dias por não poderem pagar qualquer tipo de plano de saúde.

Se não tiver seguro de saúde (como 50 milhões de norte-americanos não têm), então há boas razões para temes ainda mais a ambulância e os cuidados de saúde que o governo presta. Viagens de ambulância custam em média o equivalente a 1300 reais e a estadia num hospital público mais de 500 reais por noite. Para a maioria das operações cirúrgicas (que chegam à casa das dezenas de milhar), é bom que possa pagar um seguro de saúde privado. Caso contrário, a América é a terra das oportunidades e, como o nome indica, terá a oportunidade de se endividar e também a oportunidade de ficar em casa, torcendo para não morrer.

6. Os EUA foram fundados sobre o genocídio de 10 milhões de nativos. Só entre 1940 e 1980, 40% de todas as mulheres em reservas índias foram esterilizadas contra sua vontade pelo governo norte-americano.

Esqueçam a história do Dia de Ação de Graças com índios e colonos partilhando placidamente o mesmo peru em torno da mesma mesa. A História dos Estados Unidos começa no programa de erradicação dos índios. Tendo em conta as restrições atuais à imigração ilegal, ninguém diria que os fundadores deste país foram eles mesmos imigrantes ilegais, que vieram sem o consentimento dos que já viviam na América. Durante dois séculos, os índios foram perseguidos e assassinados, despojados de tudo e empurrados para minúsculas reservas de terras inférteis, em lixeiras nucleares e sobre solos contaminados. Em pleno século XX, os EUA iniciaram um plano de esterilização forçada de mulheres índias, pedindo-lhes para colocar uma cruz num formulário escrito em idioma que não compreendiam, ameaçando-as com o corte de subsídios caso não consentissem ou, simplesmente, recusando-lhes acesso a maternidades e hospitais. Mas que ninguém se espante, os EUA foram o primeiro país do mundo oficializar esterilizações forçadas como parte de um programa de eugenia, inicialmente contra pessoas portadoras de deficiência e, mais tarde, contra negros e índios.

7. Todos os imigrantes são obrigados a jurarem não ser comunistas para poder viver nos EUA.

Além de ter que jurar não ser um agente secreto nem um criminoso de guerra nazi, vão lhe perguntar se é, ou alguma vez foi membro do Partido Comunista, se tem simpatias anarquista ou se defende intelectualmente alguma organização considerada terrorista. Se responder que sim a qualquer destas perguntas, será automaticamente negado o direito de viver e trabalhar nos EUA por “prova de fraco carácter moral”.

8. O preço médio de uma licenciatura numa universidade pública é 80 mil dólares.

O ensino superior é uma autêntica mina de ouro para os banqueiros. Virtualmente, todos os estudantes têm dívidas astronômicas, que, acrescidas de juros, levarão, em média, 15 anos para pagar. Durante esse período, os alunos tornam-se servos dos bancos e das suas dívidas, sendo muitas vezes forçados a contrair novos empréstimos para pagar os antigos e assim sobreviver. O sistema de servidão completa-se com a liberdade dos bancos de vender e comprar as dívidas dos alunos a seu bel prazer, sem o consentimento ou sequer o conhecimento do devedor. Num dia, deve-se dinheiro a um banco com uma taxa de juros e, no dia seguinte, pode-se dever dinheiro a um banco diferente com nova e mais elevada taxa de juro. Entre 1999 e 2012, a dívida total dos estudantes norte-americanos cresceu à marca dos 1,5 trilhões de dólares, elevando-se assustadores 500%.

9. Os EUA são o país do mundo com mais armas: para cada dez norte-americanos, há nove armas de fogo.

Não é de se espantar que os EUA levem o primeiro lugar na lista dos países com a maior coleção de armas. O que surpreende é a comparação com outras partes do mundo: no restante do planeta, há uma arma para cada dez pessoas. Nos Estados Unidos, nove para cada dez. Nos EUA podemos encontrar 5% de todas as pessoas do mundo e 30% de todas as armas, algo em torno de 275 milhões. Esta estatística tende a se elevar, já que os norte-americanos compram mais de metade de todas as armas fabricadas no mundo.

10. Há mais norte-americanos que acreditam no Diabo do que os que acreditam em Darwin.

A maioria dos norte-americanos são céticos. Pelo menos no que toca à teoria da evolução, já que apenas 40% dos norte-americanos acreditam nela. Já a existência de Satanás e do inferno soa perfeitamente plausível a mais de 60% dos norte-americanos. Esta radicalidade religiosa explica as “conversas diárias” do ex-presidente Bush com Deus e mesmo os comentários do ex-pré-candidato republicano Rick Santorum, que acusou acadêmicos norte-americanos de serem controlados por Satã.

 

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15
Ago15

Os latifúndios de ideias

por Hilton Besnos

OS LATIFÚNDIOS DE IDEIAS

 

Por Ladislau Dowbor

A concentração de renda e a destruição ambiental continuam sendo os nossos grandes desafios. São facetas diferentes da mesma dinâmica: na prática, estamos destruindo o planeta para a satisfação consumista de uma minoria, e deixando de atender os problemas realmente centrais. Como explicar que, com tantas tecnologias, produtividade e modernidade, estejamos reproduzindo o atraso? Em particular, como a sociedade do conhecimento pode se transformar em vetor de desigualdade?

O prêmio Nobel Kenneth Arrow considera que os autores de “Apropriação indébita: como os ricos estão tomando a nossa herança comum”, Gar Alperovitz e Lew Daly, “se baseiam em fontes impecáveis e as usam com maestria. Todo mundo irá aprender ao ler este livro”. Eu, que não sou nenhum prêmio Nobel, venho aqui contribuir com a minha modesta recomendação, transformando o meu prefácio em instrumento de divulgação. Mania de professor, querer comunicar o entusiasmo de boas leituras. E recomendação a não economistas: os autores deste livro têm suficiente inteligência para não precisar se esconder atrás de equações. A leitura flui.

A quem vai o fruto do nosso trabalho, e em que proporções? É a eterna questão do controle dos nossos processos produtivos. Na era da economia rural, os ricos se apropriavam do fruto do trabalho social, por serem donos da terra. Na era industrial, por serem donos da fábrica. E na era da economia do conhecimento, a propriedade intelectual se apresenta como a grande avenida de acesso a uma posição privilegiada na sociedade. Mas para isso, é preciso restringir o acesso generalizado ao conhecimento, pois se todos tiverem acesso, como se cobrará o pedágio, como se assegurará a vantagem de minorias?

Um argumento chave desta discussão, é naturalmente a legitimidade da posse. De quem é a terra, que permitia as fortunas e o lazer agradável dos senhores feudais? Apropriação na base da força, sem dúvida, legitimada em seguida por uma estrutura de heranças familiares. Uma vez aceito, o sistema funciona, pois na parte de cima da sociedade forma-se uma aliança natural ditada por interesses comuns.

Na fase industrial, um empresário pega um empréstimo no banco – e para isso ele já deve pertencer a um grupo social privilegiado – e monta uma empresa. Da venda dos produtos, e pagando baixos salários, tanto auferirá lucros pessoal como restituirá o empréstimo ao banco. De onde o banco tirou o dinheiro? Da poupança social, sob forma de depósitos, poupança esta que será transformada na fábrica do empresário. Aqui também, vale a solidariedade dos proprietários de meios de produção, e o resultado de um esforço que é social será em boa parte apropriado por uma minoria.

A apropriação privada de um produto social deve ser justificada. O aporte principal de Alperovitz e de Daly, neste pequeno estudo, é de deixar claro o mecanismo de uma apropriação injusta – Unjust Deserts – que poderíamos explicitar com a expressão mais corrente de apropriação indébita. Ao tornar transparentes estes mecanismos, os autores na realidade estão elaborando uma teoria do valor da economia do conhecimento. A força explicativa do que acontece na sociedade moderna, com isto, torna-se poderosa.Mudam os sistemas, evoluem as tecnologias, mas não muda o esquema. Na fase atual, da economia do conhecimento, coloca-se o espinhoso problema da legitimidade da posse do conhecimento. A mudança é radical, relativamente aos sistemas anteriores: a terra pertence a um ou a outro, as máquinas têm proprietário, são bens “rivais”. No caso do conhecimento, trata-se de um bem cujo consumo não reduz o estoque. Se transmitimos o conhecimento a alguém, continuamos com ele, não perdemos nada, e como o conhecimento transmitido gera novos conhecimentos, todos ganham. A tendência para a livre circulação do conhecimento para o bem de todos torna-se portanto poderosa.

Para dar um exemplo trazido pelo autor, quando a Monsanto adquire controle exclusivo sobre determinada semente, como se a inovação tecnológica fosse um aporte apenas dela, esquece o processo que sustentou estes avanços. “O que eles nunca levam em consideração, é o imenso investimento coletivo que carregou a ciência genética dos seus primeiros passos até o momento em que a empresa toma a sua decisão. Todo o conhecimento biológico, estatístico e de outras áreas sem o qual nenhuma das sementes altamente produtivas e resistentes a doenças poderia ter sido desenvolvida – todas as publicações, pesquisas, educação, treinamento e ferramentas técnicas relacionadas sem os quais a aprendizagem e o conhecimento não poderiam ter sido comunicados e fomentados em cada estágio particular de desenvolvimento, e então passados adiante e incorporados, também, por uma força de trabalho de técnicos e cientistas – tudo isto chega à empresa sem custo, um presente do passado” (55) Ao apropriar-se do direito sobre o produto final, e ao travar desenvolvimentos paralelos, a empresa canaliza para si gigantescos lucros da totalidade do esforço social, que ela não teve de financiar. Trata-se de um pedágio sobre o esforço dos outros. Unjust Deserts.

Se não é legítimo, pelo menos funciona? A compreensão do caráter particular do conhecimento como fator de produção já é antiga. Uma jóia a este respeito é um texto, de 1813, de Thomas Jefferson: “Se há uma coisa que a natureza fez que é menos suscetível que todas as outras de propriedade exclusiva, esta coisa é a ação do poder de pensamento que chamamos de idéia….Que as idéias devam se expandir livremente de uma pessoa para outra, por todo o globo, para a instrução moral e mútua do homem, e o avanço de sua condição, parece ter sido particularmente e benevolente desenhada pela natureza, quando ela as tornou, como o fogo, passíveis de expansão por todo o espaço, sem reduzir a sua densidade em nenhum ponto, e como o ar no qual respiramos, nos movemos e existimos fisicamente, incapazes de confinamento, ou de apropriação exclusiva. Invenções não podem, por natureza, ser objeto de propriedade.”1

O conhecimento não constitui uma propriedade no mesmo sentido que a de um bem físico. A caneta é minha, faço dela o que quiser. O conhecimento, na medida em que resulta de um esforço social muito amplo, e constitui um bem não rival, obedece a outra lógica, e por isto não é assegurado em permanência, e sim por vinte anos, por exemplo, no caso das patentes, ou quase um século no caso dos copyrights, mas sempre por tempo limitado: a propriedade é assegurada por sua função social – estimular as pessoas a inventarem ou a escreverem – e não por ser um direito natural.

O merecimento é para todos nós um argumento central. Segundo as palavras dos autores, “nada é mais profundamente ancorado em pessoas comuns do que a idéia de que uma pessoa tem direito ao que criou ou ao que os seus esforços produziram”.(96) Mas na realidade, não são propriamente os criadores que são remunerados, e sim os intermediários jurídicos, financeiros e de comunicação comercial que se apropriam do resultado da criatividade, trancando-o em contratos de exclusividade, e fazem fortunas de merecimento duvidoso. Não é a criatividade que é remunerada, e sim a apropriação dos resultados: “Se muito do que temos nos chegou como um presente gratuito de muitas gerações de contribuições históricas, há uma questão profunda relativamente a quanto uma pessoa possa dizer que “ganhou merecidamente” no processo, agora ou no futuro.”(97)

As pessoas em geral não se dão conta das limitações. Hoje 95% do milho plantado nos EUA é de uma única variedade, com desaparecimento da diversidade genética, e as ameaças para o futuro são imensas. Teremos livre acesso às obras de Paulo Freire apenas a partir de 2050, 90 anos depois da morte do autor. O livre acesso às composições de Heitor Villalobos será a partir de 2034. Isto está ajudando a criatividade de quem? Patentes de 20 anos há meio século atrás podiam parecer razoáveis, mas com o ritmo de inovação atual, que sentido fazem? Já são 25 milhões de pessoas que morreram de Aids, e as empresas farmacêuticas (oBig Pharma) proíbem os países afetados de produzir o coquetel, são donas de intermináveis patentes. Ou seja, há um imenso enriquecimento no topo da pirâmide, baseado não no que estas pessoas aportaram, mas no fato de se apropriarem de um acúmulo historicamente construído durante sucessivas gerações.

Nesta era em que a concentração planetária da riqueza social em poucas mãos está se tornando insustentável, entender o mecanismo de geração e de apropriação desta riqueza é fundamental. Os autores não são nada extremistas, mas defendem que o acesso aos resultados dos esforços produtivos devam ser minimamente proporcionais aos aportes. “A fonte de longe a mais importante da prosperidade moderna é a riqueza social sob forma de conhecimento acumulado e de tecnologia herdada”, o que significa que “uma porção substantiva da presente riqueza e renda deveria ser realocada para todos os membros da sociedade de forma igualitária, ou no mínimo, no sentido de promover maior igualdade”.(153)

Um livro curto, muito bem escrito, e sobretudo uma preciosidade teórica, explicitando de maneira clara a deformação generalizada do mecanismo de remuneração, ou de recompensas, que o nosso sistema econômico gerou. Trata-se aqui de um dos melhores livros de economia que já passaram por minhas mãos. Bem documentado mas sempre claro na exposição, fortemente apoiado em termos teóricos, na realidade o livro abre a porta para o que podemos qualificar de teoria do valor, mas não da produção industrial, e sim da economia do conhecimento, o que Daniel Bell qualificou de “knowledge theory of value”. A Editora Senac tomou uma excelente iniciativa ao traduzir e publicar este livro. Vale a pena. (www.editorasenacsp.com.br )

Ladislau Dowbor, professor de economia e administração da PUC-SP, é autor de Democracia Econômica e de Da propriedade Intelectual à Sociedade do Conhecimento,disponíveis em http://dowbor.org

1 Citado por Lawrence Lessig, The Future of Ideas: the Fate of the Commons in an Connected World – Random House, New York, 2001, p. 94

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13
Ago15

http://filosofonet.wordpress.com/2012/07/02/o-que-e-paradigma-segundo-thomas-kuhn/#comment-1612

Publicado em 02/07/2012, Por Michel Aires de souza 

Entender as ciências é conhecer sua prática, seu funcionamento e seus mecanismos. É compreender o comportamento do cientista, suas  atitudes e suas decisões. Foi a partir da compreensão da prática do cientista que Thomas Kuhn desvelou os mecanismos internos das ciências. Para ele as ciências evoluem através de paradigmas.  Paradigmas são modelos, representações e interpretações de mundo universalmente reconhecidas que fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade científica.

É por meio dos paradigmas que os cientistas buscam respostas para os problemas colocados pelas ciências. Os paradigmas são, portanto, os pressupostos das ciências. A prática científica ao fomentar leis, teorias, explicações e aplicações criam modelos que fomentam as tradições científicas.  Segundo Kuhn, os “paradigmas são as realizações cientificas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornece problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência” (Kuhn, 1991, p.13).  A física de Aristóteles é um bom exemplo de paradigma, sua teoria  foi aceito por mais de mil anos. A astronomia Copernicana, a dinâmica Newtoniana, a química de Boyle, a teoria da relatividade de Einstein também são paradigmas.

        O conceito de paradigma surgiu das experiências de Kuhn como cientista. Ele percebeu que a prática cientifica é uma tentativa de forçar a natureza a encaixar-se dentro dos limites preestabelecidos e relativamente inflexíveis fornecido pelo paradigma. Ou seja, a ciência é uma tentativa de forçar a natureza a esquemas conceituais fornecidos pela educação profissional. Na ausência de um paradigma, todos os fatos significativos são pertinentes ao desenvolvimento de uma ciência.

        O motor das ciências é a luta entre moldelos explicativos, entre teorias e concepções de mundo, “o desenvolvimentoda da maioria das ciências têm-se caracterizado pela contínua  competição  entre diversas concepções de natureza distintas”. (Kuhn, 1991, p.22). É o que Kuhn denomina de ciência normal. A ciência normal não se desenvolve por acumulação de descobertas e invenções individuais, mas por revoluções de paradigmas. Por exemplo, a teoria geocêntrica de Ptolomeu, que afirmava ser a terra o centro do universo, foi substituída por um novo modelo, a teoria heliocêntrica de Copérnico, que afirmava ser o sol o centro. Outro exemplo é a teoria da gravitação de Newton, que afirmava ser a gravidade  uma força fundamental existente em todos os corpos. Essa teoria foi completamente modificada por um novo modelo explicativo, a teoria da relatividade-geral de Einstein. Segundo esse novo modelo, a gravidade não seria uma característica dos corpos, mas das distorções do espaço-tempo local causado pelo peso das massas dos corpos. Essas transformações de paradigmas são revoluções científicas e “a transição sucessiva de um paradigma a outro, por meio de uma revolução, é o padrão usual de desenvolvimento da ciência amadurecida” (Kuhn, 1991, 32).

      Para Kuhn a ciência normal são as pesquisas que estão baseadas em conquistas do passado. Essas conquistas são reconhecidas pela comunidade científica de uma área particular e possuem duas características comuns. A primeira característica é que suas conquistas atraem um grande número de cientista em torno de uma atividade ou teoria. A segunda afirma que suas realizações estão abertas para a comunidade científica problematizar e resolver toda espécie de problemas.  Os cientistas que compartilham um mesmo paradigma estão comprometidos com as mesmas “regras” e “padrões” estabelecidos pela prática científica. “A ciência normal, atividade na qual a maioria dos cientistas emprega inevitavelmente quase todo seu tempo, é baseada no pressuposto de que a comunidade científica sabe como é o mundo. Grande parte do sucesso do empreendimento deriva da disposição da comunidade para defender esse pressuposto – com custos consideráveis se necessário”. (Kuhn, 1991, p.24).

       Kuhn (1991) afirma ainda que o paradigma se constitui como uma rede de compromissos ou adesões, conceituais, teóricas, metodológicas e instrumentais compartilhados. O paradigma é o que faz com que um cientista seja membro de uma determinada comunidade cientifica. Através da educação o jovem adquire os esquemas conceituais de sua atividade. É a educação profissional que lhe permitirá aprender e internalizar esses pressupostos. Uma vez aprendido o cientista vai compartilha-los em sua prática profissional.

         Outra característica importante do paradigma é que ele não depende de regras externas. Para Kuhn (1991, p.69), os problemas e técnicas da pesquisa que surgem numa tradição não estão necessariamente submetidos a um conjunto de regras. A falta de uma interpretação padronizada ou de regras não impede que um paradigma oriente a pesquisa. Na verdade, a existência de um paradigma nem mesmo precisa implicar a existência de qualquer conjunto completo de regras.  Isso significa que a ciência normal não é um empreendimento unificado e monolítico. As várias ciências e seus vários ramos são bastante instáveis, muitos delas não têm coerência entre suas partes. Há grandes revoluções como pequenas revoluções, algumas apenas afetam apenas uma parte de um campo de estudos, outras afetam grupos bastante amplos. Devido a esta estrutura instável das ciências é impossível uma total padronização dos paradigmas.  

 

Bibliografia

KUHN, Thomas. S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1991.

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13
Ago15

http://reevo.org/externo/la-escuela-debe-ensenar-a-pensar-evald-vasilievich-ilienkov/

La escuela debe enseñar a pensar”: Evald Vasilievich Iliénkov

31/10/2014

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De esto a nadie le cabe la menor duda. Mucho más, cada pedagogo dirá: ¿cada uno puede responder qué significa esto? ¿Qué significa pensar y qué es el pensamiento? La pregunta está lejos de ser sencilla y, en determinado sentido, es capciosa.

Con mucha frecuencia confundimos el desarrollo de la capacidad de pensar y el proceso de adquisición de los conocimientos establecidos por los programas. Y estos dos procesos, sin embargo, no coinciden automáticamente, aunque son imposibles uno sin el otro. “El mucho saber no enseña inteligencia”. Esta idea, expresada hace más de dos milenios, por el sabio Heráclito de Éfeso, no ha envejecido hoy día.

La inteligencia o la capacidad, la habilidad de pensar, el “mucho conocimiento” por sí mismo, en la realidad no la enseña. ¿Y qué es lo que enseña? ¿Y, en general, se puede enseñar la inteligencia, aprenderla?

Está lejos de carecer de fundamento la opinión de acuerdo con la cual la inteligencia, la capacidad de pensar, el “talento” viene de “Dios” y en una terminología más ilustrada “de la Naturaleza”; del padre y la madre. En realidad, ¿se puede inculcar en el hombre la inteligencia en forma de sistema de reglas exactamente elaboradas, de esquemas, de operaciones; resumiendo: en forma de lógica?

Hay que reconocer que no se puede. Es conocido que las mejores reglas y recetas, cuando caen en una cabeza tonta, no hacen a esta cabeza más inteligente, en cambio, ellas de transforman en un absurdo.

El filósofo Immanuel Kant escribió que “La escuela puede sólo dar un razonamiento limitado, algo así como meter en él todas las reglas logradas por la comprensión ajena, pero la capacidad de utilizarlas correctamente debe pertenecer al propio educando y en caso de carencia de este don natural ninguna regla puede asegurar su correcta utilización. La insuficiencia de la capacidad de juicio es propiamente aquello que llaman tontería; contra esta insuficiencia no hay medicina”. Aparentemente justo. Lenin, muy compasivamente, como “gracioso”, citó el planteamiento de Hegel acerca del “prejuicio” de que la lógica enseña a pensar: “esto se parece a si dijeran que gracias al estudio de la anatomía y la fisiología nosotros aprendemos por primera vez a digerir el alimento y a movernos.”

Pero, ¿cómo hacer en este caso con el llamamiento publicado en calidad de título del artículo? ¿No demuestra el propio autor que realizar esta consigna es imposible, que la inteligencia es un “don natural” y no una habilidad adquirida?

Esto no es así. Es cierto que la capacidad, la habilidad de pensar es imposible “meterla”, convertirla en una suma de reglas, de recetas; como se dice ahora: de algoritmos se puede “meter” en su cabeza sólo una inteligencia de una computadora, pero no la inteligencia de un matemático.

Las consideraciones expuestas al comienzo del artículo, con todo, no agotan la posición del filósofo idealista Kant en relación con la inteligencia, mucho menos la posición materialista. Es falso que la inteligencia sea un “don natural”. El hombre sólo le debe a la naturaleza el cerebro, el órgano del pensamiento: la capacidad de pensar con ayuda de este cerebro, no solo se desarrolla, se perfecciona, sino que surge sólo junto con el contacto del hombre con la cultura general de la humanidad, con los conocimientos, como la capacidad de andar en dos pies que el hombre no posee de la naturaleza. Esta es una habilidad como todas las capacidades humanas restantes. Cierto que el andar erguido es fácil de enseñar por cualquier madre, pero utilizar el cerebro para pensar no sabe enseñarlo cada pedagogo profesional, aunque éste tiene un conjunto de ayudantes: al pensamiento del pequeño le enseña toda su vida circundante.

Las representaciones acerca del surgimiento innato, natural, de la capacidad (o incapacidad) de pensar es sólo una cortina que oculta al pedagogo intelectualmente haragán aquellas situaciones y condiciones realmente muy complejas que prácticamente despiertan y forman la inteligencia, la capacidad de pensar independientemente. Con estas representaciones justifican frecuentemente su incomprensión de tales condiciones, el poco deseo de adentrarse en ellas y tomar para sí el trabajo nada fácil de su organización.

Artículo completo en pdf: La escuela debe enseñar a pensar, Evald V. Iliénkov

Ensayo publicado en la revista “Educación popular”, 1964, No. 6 (suplemento)

Traducido por: Eduardo Albert.

Revisado por: Rafael Plá León.

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13
Ago15

Jornalismo de horrores

por Hilton Besnos

FONTE OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA http://observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed827_jornalismo_de_horrores MÍDIA SENSACIONALISTA

Por Marcos Fabrício Lopes da Silva em 02/12/2014 na edição 827

 

Gentil e visceralmente, o poeta Eugênio Giovenardi propõe versos para melhor alertar a Humanidade sobre os perigos comportamentais oriundos do distanciamento da sensibilidade, levando, por exemplo, pessoas a cometerem atrocidades violentas que prejudicam a qualidade de vida no mundo. No livro Ventos da alma (2003), especialmente nos poemas “Preocupações” e “Horrores cotidianos”, Giovenardi destaca criticamente o peso da violência simbólica (mãe da violência física) promovida pelo jornalismo sensacionalista.

Cada agente midiático é responsável por aquilo que diz/escreve, num nível existencial em que nossos compromissos éticos, políticos e estéticos encontram-se e ligam-se estreitamente. Ao naturalizar a tristeza, a “imprensa marrom” contribui para a transformação do horizonte colorido em totalidade cinzenta, fazendo-nos crer que a felicidade é um tipo de “impossível desnecessário”, projetando, assim, um “efeito estufa” no qual o trágico é alçado perigosamente como resumo mais apropriado do humano.

No primeiro poema assinalado, Giovenardi utiliza o recurso daenumeração gradativa, negativamente condicionada a processar automaticamente a realidade social como se ela fosse um mero conjunto de quinquilharias atitudinais ordinárias. O cotidiano é empobrecido por conta da ausência do sublime, favorecendo a proliferação nefasta doimpério do grotesco:

“O juro da caderneta,/ a flutuação do dólar,/ a conta da luz,/ a antena da tevê,/ o mau humor da empregada,/ as bebedeiras do caseiro,/ a ausência dos amigos,/ a superficialidade das telenovelas,/ a indiferença dos funcionários/ do Correio e da Telebrasília./ As queimadas criminosas e primitivas,/ os alarmes dos carros,/ os cavalos de pau/ e os pegas noturnos,/ os meninos de rua,/ os cuidadores de carro,/ os ladrões de banana,/ os anões do congresso,/ os políticos ladinos,/ os corruptos insignes,/ as falas do presente,/ os protestos inúteis do cidadão,/ as imunidades da corte,/ as impunidades legais./ Brazagallo, brazico, Brasil,/ o imenso carnaval continental,/ a irresponsabilidade geral.”

Muros antissociais

Interessa-nos, de perto, perceber como o poeta apela objetivamente para o meio descritivo no sentido de melhor dissertar sobre a pequenez de nossas preocupações que impedem a experiência da vida em plenitude. Considerar tudo o que se passa como mínimo também prejudica a sensibilidade humana como linguagem afetiva capaz de acolher as sutilezas variadas, conforme a natureza específica e relacional de cada matéria. Cair no conto da mesmice é, assim, perder de vista o que de maravilhoso acontece, aceitando o enfadonho como única instância do real. Nesse sentido, “a antena de tevê” e “a superficialidade das telenovelas”, segundo Giovenardi, fazem parte da lista de fatores negativos que rebaixam ou inviabilizam a nossa potência de agir, mirada na qualidade estética (a procura do belo) e ética (a procura do bem).

Crescem, desse modo, os “horrores cotidianos”, em progressão assustadoramente geométrica. Assim, Giovenardi, no segundo poema citado, prossegue em seu empenho de defender a dimensão afetiva como potência de transformação expansiva. Infelizmente, a imprensa sensacionalista vem se colocando como promotora de muros antissociais, desestimulando consequentemente a construção de pontes comunitárias que possam, de fato, ligar todas as fontes subjetivas de onde brotam todas as riquezas substantivas:

“Incêndio na favela de Heliópolis,/ explosão do shopping de Osasco,/ matanças nas periferias/ de qualquer cidade,/ chacinas no centro de hemodiálise/ de Caruaru./ Mortes em massa na casa de velhos/ Santa Genoveva,/ chacina de sem-terra/ em Corumbiara e Eldorado/ de Carajás./ Sangue, choro, desespero,/ velórios coletivos, solidariedade,/ heroísmo, passeatas, protestos,/ discursos, promessas, fotografias,/ reportagens ao vivo,/ quase anunciadas,/ quase programadas./ Silêncio! enterro das vítimas./ Esquecimento./ Até daqui a pouco./ Até a próxima.”

Violência com indiferença

Está projetada nestes versos uma realidade editorial concreta: a mídia e sua “necrofilia insaciável”. Os destaques jornalísticos oferecem prioridade à melodramatização de um discurso que parece fascinado pelo sangrento e o macabro. Desponta, no jornalismo sensacionalista, a cultura do fait divers (introduzido por Roland Barthes, no livro Ensaios Críticos, em 1964), formado por um mosaico noticioso de ocorrências escandalosas, curiosas e bizarras que, desde o início da imprensa, dão o tom editorial mais apelativo, visando chamar a atenção da audiência. Em ritmo industrial galopante, o mercado noticioso não pode parar. Ele é marcado por fatos que se esgotam, quando cumprida a sua missão efêmera, e que, em seguida, devem ser destruídos: fisicamente, diz-se que os jornais do dia anterior “servem apenas para embrulhar peixe”; psicologicamente, sua memória será substituída por uma novidade no dia seguinte.

O triunfo do jornalismo sensacionalista sobre o jornalismo de reflexão contribui para a atitude passiva de muitos setores da sociedade em relação à violência. Trata-se de um sistema perverso que sobrevive às custas da produção, em larga escala, da “mercadoria da crueldade”, conforme termo cunhado pelo professor Adélcio de Sousa Cruz, emNarrativas contemporâneas da violência: Fernando Bonassi, Paulo Lins e Ferréz (2012). A insensibilidade, frente aos fatos, se agiganta, conforme o alto volume de frases de defeito moral conferidas pela criminosa imprensa do trauma. Bestificados com o teatro de horrores, transmitido diuturnamente pela mídia, fecham-se os olhos para as mazelas do mundo. Tudo em prol de frivolidades que promovam um generalizado escapismo alienador e maléfico. Um atentado à vida deixa de ser preocupante – eticamente falando – por razões de alteridade anestesiada. Muito bem ilustra esta tendência rudimentar a canção De frente pro crime (1975), composta por João Bosco e Aldir Blanc:

“Tá lá o corpo estendido no chão/ Em vez de um rosto uma foto de um gol/ Em vez de reza uma praga de alguém/ E um silêncio servindo de amém/ O bar mais perto depressa lotou/ Malandro junto com trabalhador/ Um homem subiu na mesa do bar/ E fez discurso pra vereador/ Veio camelô vender anel, cordão, perfume barato/ E a baiana pra fazer pastel e um bom churrasco de gato/ Quatro horas da manhã baixou o santo na porta-bandeira/ E a moçada resolveu parar, e então…/ Tá lá o corpo estendido no chão/ Em vez de um rosto uma foto de um gol/ Em vez de reza uma praga de alguém/ E um silêncio servindo de amém/ Sem pressa foi cada um pro seu lado/ Pensando numa mulher ou num time/ Olhei o corpo no chão e fechei/ Minha janela de frente pro crime.”

Um dos maiores agentes difusores e produtores da violência, o fazer sensacionalista povoa o jornalismo de palavras espinhosas, impedindo que a sociedade reconheça seus membros como seres floridos e capazes de oferecer ao mundo o “mel do melhor”. O fel do pior, elevado midiaticamente à enésima potência, provoca um fenômeno extremamente perverso: a “banalidade do mal”, como diria Hannah Arendt. Na “imprensa marrom”, as palavras ficam sobrando, pois não fundam vínculos sociais, não esclarecem mentes e corações, não atraem relações sensíveis e não acrescentam nada de dignificante para a humanidade. Sabemos que a realidade humana encontra-se fundamentada segundo os princípios do bem e do mal, do aperfeiçoamento e da destruição. E para darmos conta desta composição ambivalente, precisamos nela mergulhar mediante a palavra pensada, a palavra consciente.

No sensacionalismo, a palavra escandalizada e pisoteada dá o tom do barulho frenético midiatizado grosseiramente, beneficiando o modelo apressado de cobrir a realidade jornalisticamente. No beco escuro das redações, explodem a violência com indiferença. A respeito, já alertava Carlos Drummond de Andrade, em Poema do jornal (1930):

“O fato ainda não acabou de acontecer/ e já a mão nervosa do repórter/ o transforma em notícia./ O marido está matando a mulher./ A mulher ensanguentada grita./ Ladrões arrombam o cofre./ A polícia dissolve o meeting./ A pena escreve./ Vem da sala de linotipos a doce música mecânica”.

***

Marcos Fabrício Lopes da Silva é professor da Faculdade JK, jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários.

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