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Ao ler o facebook, tenho a impressão de que estou em um grande mercado, cada um (lojinha) postando o que lhe aprouver sem nenhum critério. Não estou criticando ninguém em específico, mas apenas constatando que é como se eu estivesse vendo televisão, com flashes curtos. O facebook é indispensável para que eu fale com pessoas que quero muito perto de mim, sem dúvida alguma, e até criamos amizades nele ou a partir dele, mas para tanto temos de percorrer a via crucis. Abraços. HILTON BESNOS
TENHO UMA RELAÇÃO INTERESSANTE COM OS LIVROS. É como se eles tivessem atados por fios, em uma rede constante ligada à minha história pessoal. Termino de ler um bom romance mas é como se ele não ficasse “abandonado”, por assim dizer; antes, tenho uma necessidade de mantê-los, de alguma forma, por perto, para (re)ler alguma passagem, fazer uma consulta e assim por diante. Adoro, por exemplo, rodapés.
Sei que é um pouco (ou muito) fóbico, mas gostaria de possuir em um arquivo pessoal todas as remissões e notas de rodapé possíveis, pelo menos para passar os olhos, ler calmamente. Tenho certeza de que seria um estímulo para que escrevesse mais do que o faço. Há um triângulo que se retroalimenta a partir do leitor: quem lê, escreve e, ao mesmo tempo, auto-interpreta. Tudo isso se sustenta de modo sutil, mas especialmente forte. Claro, nem todos os que leem habitualmente tem o hábito de escrever, mas quando não o fazem por prazer, não encontram dificuldades maiores em fazê-lo em outras circunstâncias. A leitura é, assim, um portal que nos catapulta para o mundo letrado e uma possibilidade real de descobrir novos horizontes a partir das nossa novas e constantes (re) interpretações da realidade.
De todo modo, a leitura é uma forma de interação muito particular com o desconhecido, e portanto, sua experiência é – como as próprias aprendizagens – única e personalíssima. Do mesmo modo que a aprendizagem se dá através da intermediação do e com o outro, ou seja, das nossas próprias representações do mundo e dos efeitos que tais perturbações causam a nós mesmos, a leitura intermedeia uma melhor compreensão do simbólico, pelo que, ao lermos, desenvolvemos qualitativamente nossa habilidade em nos movimentarmos dentro dos diversos níveis representativos nos quais estamos imersos.
O leitor habitual cruza a fronteira da decifração do vocábulo para uma dimensão muito mais ampla e sutil, mais diversificada e plural do que, mentalmente e em princípio, construíra como mundo. A leitura nos insere no desenvolvimento da prática do discurso, da alteridade da fala, da intencionalidade e da habilidade de nos comunicarmos com esse mesmo outro que, ainda como intermediador, nos ensina a aprender. Ler é, portanto, fundamental na aprendizagem, pois nos insere dentro do mundo das significações e, portanto, dentro de uma perspectiva simbólica. Sejamos todos bem vindos à jornada, talvez a mais expressiva de todas! HILTON BESNOS.
O ALUNO NHÉ NHÉ NHÉ SÓ SOBREVIVE DENTRO de uma estrutura que o trate como coitadinho e quando o sistema é adepto da política do blá blá blá. Dentro do sistema blá blá blá, o pobrezinho do aluno é um ser em permanente risco social, a escola é um útero, professores são pais e professoras são mães que os devem proteger dos males do mundo. Toda e qualquer questão do mundo real (currículo, aprendizagem, responsabilidade, cooperação, esforço pessoal, atenção, solidariedade, etc) deve ser minimizada, até que cheguemos ao improvável.
Um exemplo claro aconteceu por esses dias na escola, comigo e em sala de aula, no noturno, na EJA. Três alunos (?), daqueles que tem barba na cara entraram em aula, sendo que um deles entrou em sala de aula com um skate. Juro. Com um skate. Esse não fez nada durante dez minutos, a não ser mexer em seu celular. Um dos outros três, que já havia saído na aula anterior com uma grosseria inominável, tendo abandonado a aula por seu gosto, abriu o caderno mas nada fez. O que estava sentado atrás dele, para participar do grupo, igualmente adotou uma atitude debochada.
Às tantas, perguntei porque os dois não estavam trabalhando em aula, e eles responderam “perdi o que tu disse”, “tu dita muito rápido”, “não entendi” e por aí afora. Eu estava ditando a respeito de radiciação. Todos os demais alunos estavam atentos e copiando o que eu ditava, sem nenhum problema. O terceiro aluno, o do skate, permanecia mexendo no celular, com sua mochila fechada.
Como nenhum dos três de barba na cara estava com a mínima vontade de fazer coisa alguma, disse para um outro aluno chamar alguém da direção ou do soe – serviço de orientação educacional – para que os alunos fossem fazer nada em outro lugar, mas não na minha aula. Sobe a vice-diretora e, em princípio, após ver um dos alunos jogado para trás com o caderno escancarado, outro igualmente sem fazer nada, e o terceiro, ainda mexendo no celular, com o skate ao lado, pergunta o que estávamos fazendo. Eu explico (sempre os professores explicam, não é verdade?) e a resposta que escuto da mesma é a de que “pessoas diferentes escrevem em ritmos diferentes”. Ora, minha aula não é de alfabetização, e tais alunos escrevem muito bem.
A questão não é se os alunos escrevem ou não escrevem bem. A questão é a atitude de deboche, de non far niente, de ausência da mínima possibilidade de contribuição para um ambiente de aprendizagem, a possibilidade de usar o professor em aula como se ele fosse um nada e a escola como se fosse um clube. Ver a direção da escola como algo que pode ser usado, manipulado, transformado em algo ridículo, tolo, inconseqüente, como se a instituição fosse algo que estivesse ali apenas para cumprir o papel que ele, aluno, determina de acordo com o seu tempo e a sua vontade. Em suma, tratar a escola como um nada ou, melhor ainda, como um lugar no qual o aluno trata a educação como algo que está ali em condição de submissão à sua vontade. O conhecimento como um nada.
Mais: a certeza de que não haverá qualquer espécie de conseqüência mais compatível com o seu comportamento. Que o que é público, de certo modo, abençoará as suas vontades, deles, alunos, a sensação de que os professores, a escola, lhe são submissos e, por claro, o desrespeito ao profissional. É o esquema blá blá blá que acaricia, que beneficia, que acolhe o aluno que é nhé nhé nhé, relapso por opção e néscio por conveniência.
Eles, alunos (pelo menos teoricamente alunos) sabem, de larga experiência, que tudo não passará de uma conversinha funesta, regada a possíveis fatores externos que explicarão o que eles fizeram, desde as perspectivas mais remotas às mais tolas, e que isso tudo será engulido on board.
O que me deixa muito aborrecido.
Enfim, após os rapapés necessários e as caras feias indispensáveis, saem os três heroes of marginality e eu consigo continuar, sem perturbação, a minha aula; inclusive alunos que estavam quietos começam a perguntar, se mostram interessados… No final da noite, a direção me informa que “quer conversar comigo na quinta-feira” a respeito dos três alunos.
Sinceramente, não me interessa saber. O que me interessa é que eles venham pra minha aula a fim de estudar, e não a fim de bancar os rebeldes sem causa e receberem tratamento VIP. Só isso me interessa.
Não tenho paciência para alunos nhé nhé nhé. Não os chamo para minha aula, não me considero responsável por eles. Converso e tenho um ótimo relacionamento com alunos que tem dificuldades para aprender, mas que tem, especialmente, uma relação honesta com a escola e comigo. Nunca me preocupei em explicar, em reesplicar, em tentar novamente, e os erros dos meus alunos não me colocam em estresse.
Só não quero é vagabundagem pura em minha sala de aula. Muito simples, muito claro, e isso é digo (em outras palavras e através de ações) já no primeiro encontro que tenho com meus alunos. Me nego a ser pai ou mãe ou tio ou responsável por quem tem barba na cara ou já menstruou há muito tempo. Simples e direto, consigo ser respeitado por todos, porque não enrolo, não fico pedindo desculpas, não dou a cara a tapa. Não bato, mas não me coloco passivamente na posição de mártir do mundo, nem tenho qualquer vocação para ser Cristo ou Madre Teresa de Calcutá.
Muitos não entendem a minha posição, que é de responsabilizar cada um por seus atos. Ser humano e dialógico não significa, de per si, ser tolo e leniente. Talvez por isso minhas turmas me respeitem; sabem exatamente os limites, mesmo as brincadeiras e entendem que um clima de aprendizagem não é um clima de barbárie. Prefiro que seja assim, para não ser confundido com um professor-marionete. Quero fazer a diferença e, por incrível que pareça, para isso temos que ser justos, e não, efetivamente, hordas de camelos a peregrinar pelo deserto reclamando da água que não veio. HILTON BESNOS
Em 2008.
Pois meu filhote de seis anos, por esses dias, comentou:
“-Pai, saber ler e escrever muda muita coisa.”
” -Por que?, filho, eu quis saber. “Porque quando eu não sabia ler nem escrever, eu olhava as letrinhas e pronto. Hoje, quando eu olho as letrinhas sei que são palavras, e então eu tenho que ler tudo que vejo!”, foi a resposta.
Achei interessante refletir sobre isso. Sabemos que ler é mais do que decifrar um código. Esse, o da decifração, o das hipóteses formuladas, é apenas o primeiro passo, mas até que seja conferida uma significação e se entenda o sentido pleno do que se lê há todo um processo de qualificação, de aprendizagem, que necessita de um tempo e de um processo progressivo, que sempre será mediado por terceiros e no qual há um mundo de circunstâncias que comporão o cenário para a solidificação desse conhecimento.
O encantamento de saber ler, de claramente entendermos o que se lê, abre não só um instrumental indispensável em uma sociedade letrada mas cria o hábito de prosseguirmos com o papel de leitor, que será mais ou menos aprofundado ao longo do tempo. Se antes as letras eram apenas reconhecíveis como tal, hoje elas são frases, e com o tempo, além daquelas, mas histórias, estórias, mensagens, textos, letras de músicas, recadinhos, contas, contos, crônicas, romances, relatórios, cartas, discursos, poesia, memórias, bilhetes mais ou menos furtivos; as letras não apenas se juntarão, mas estabelecerão coerências, coesões, transmitirão vontades, visões de mundo, implicarão na nossa existência.
É bem possível que meu filhote não tenha ainda uma noção do que virá, mas, na sua idade e já alfabetizado, tem muito claro que a sua vida mudou (e com ela, a nossa!); já está mergulhado completamente em um mundo ainda desconhecido mas que irá ser um dos alicerces que configurará não só a sua história mas que será constituidor de sua identidade. A cada vez que lemos, mudamos um pouco, refletimos, nos excitamos um pouco, ficamos em paz, entramos em estado de alerta.
A experiência nos reserva o papel de filtragem. Lemos coisas boas e ruins porque queremos, mas admitir isso requer uma aquisição cultural que somente se dá através do mundo letrado, em seu sentido maior, o que inclui a arte, a ciência, a tecnologia, as trocas de informações e a própria experiência humana. Que bom mergulharmos nesse mundo, de todo uma viagem da qual, raramente queremos abrir mão. HILTON BESNOS
O homem, já idoso e só, procurou, aqui e ali, as suas justificativas. Achou-as facilmente, estavam espalhadas por sua casa, por sua história. Depois ele procurou os seus amores, que estavam em multigavetas: sexo, paixão, amizade, reconhecimento, tudo isso e muito mais poderia ser amor. No entanto ele buscou só a palavra amor. Achou e, ali, buscou seu conteúdo: havia alguns nomes, os dos irmãos, os dos amigos. Procurou mais no fundo da gaveta e achou duas fotos antigas, em preto e branco, e reconheceu ser a de seus pais. E quando menos esperava, uma foto três por quatro, já esmaecida pelo tempo, quase saltou-lhe a mão. Mostrava uma mulher bonita, de traços bem definidos e um olhar decidido, que contrastava com a boca pequena, bem feita. Ela, a foto, estava lá, mas ele não a identificou. Estava muito cansado. Viu as fotos dos filhos, e pensou – ingratos! – fechando a gaveta de vez.
E lá ficou a foto do seu amor, no fundo da gaveta, sem que ele, das dezenas de vezes que teve oportunidade em sua vida – a reconhecesse. HILTON BESNOS
Às vezes, quando parece que o mundo todo fala, grita, berra, comenta, discute, eu clico a tecla mode. Isso ocorre no auge da confusão e, a partir daí tudo e todos ficam mudos, imóveis, e eu tenho a maravilhosa sensação de ser um deus. O tempo, contudo, continua fluindo, mas de uma forma imperceptivelmente mais lenta, de maneira que quando cessa o efeito da tecla mode, poucos são os que notam micro-diferenças no relógio e – claro – não dão a mínima importância ao fato.
Mode é tão poderoso que para tudo ao meu redor; então as dimensões tempo-espaço abrem uma nano-bolha virtual, onde me abrigo de todo o ruído, som e palavrório explodindo ao meu redor. Então eu descanso e me integro ao universo. Cada vez que eu clico o botão mágico, a minha vida diminui exatamente o tempo de duração da bolha.
Talvez por isso, por ser uma pessoa desmedida e por não saber controlar minhas ansiedades, eu esteja já tão envelhecido, e minha pele tenha se carcomido tão rapidamente. Tenho tempo para as minhas memórias, e normalmente uso a nano-bolha para escrevê-las, de modo tão lírico que talvez algum descendente se dê ao trabalho de lê-las, entendendo um pouco mais o que sou (ou o que fui, quando lerem).
De todo modo, aqueles momentos maravilhosos me pertenceriam para sempre, me acolheriam. E quando enfim eu encontrasse meu descanso, talvez eterno, talvez não, eu estaria feliz. Poucos são tão bem afortunados, tão agraciados por Deus. Fui ungido, fui escolhido para conhecer a nano-bolha. Eventualmente, quando ao seu abrigo, até neste blog eu escrevo. HILTONBESNOS
O que construo, mesmo que seja sobre outra imagem ou tema, é algo novo, ou seja, a novidade é perene. Mesmo a cópia não é o original, portanto, se não o é, é outra coisa. Se eu reprografo algo, aquele é o original, e por isso foi reprografado; assim, desimportando quais sejam os meios virtuais, mecanicos ou de outra ordem que sejam utilizados, o original não se repete. Cabe aqui, talvez, a lição famosa de Heráclito, de que “Não poderias entrar duas vezes no mesmo rio”.
O que fazemos é nos aproximarmos, o mais possível, do original, sendo impossível mais do que uma aproximação. Ser original, portanto, implica muitas vezes em termos copiadores. Na linguagem da internet, no que se refere às redes sociais e semelhantes, seguidores. As celebridades, de modo geral, tem muitos seguidores em tais redes. Ao fim e ao cabo, ilusão que procura dilatar de modo artificial nossos próprios limites.
A quebra identitária nos torna mais próximos do objeto a ser seguido; há uma psicopatologia envolvida no processo, de tal modo que, não raro, ansiamos por compartilhar do sucesso de outrem, e nos frustramos quando nos encontramos em face de nossas próprias realidades ou, em outros termos, nos reconhecemos em nossos limites. Aqui, compartilhar é desfrutar com, em um processo de seguir junto com o outro, mesmo que não o conheçamos. Nossos desejos conformam-se à aceitação por esse outro e, nesse sentido, abandonamos parte do que somos para sermos o que o aquele é. Melhor dizendo: o que o outro representa ser.
Uma boa parte de nossas vontades segue essa trilha tortuosa, no qual flutuam a aceitação e o abandono; a conformação e a naturalização, o virtual e o real. Oscilamos, somos pêndulos e podemos passar um largo tempo assim, se interiorizarmos esse processo, se o naturalizarmos. Necessitamos de que alguém, algo, uma entidade, uma idéia, um ideário, um Messias possa nos orientar dentro de um mundo no qual poucas referências ainda podem receber esse nome.
As religiões sabem disso, a realpolitik sabe disso, os obscuros funcionários, os mass midia sabem disso, e também o sabem os apresentadores de programas de televisão, de rádio, os locutores sabem disso, os criadores de necessidades artificiais e, especialmente, o sempre intencional e intangível mercado, ou, em outras palavras, a mercancia que objetiva o trânsito de mercadorias e de créditos não apenas em nível real mas em instâncias psíquicas e identitárias.
Não importa o que somos, seremos mais se naturalizarmos tais relações propostas com base em nossas carências e inações. De qualquer modo, sempre podemos escolher a cópia que faremos, e que mais nos agradará na medida em que crermos que dela necessitamos. Nosso exercício de criatividade, contudo, não vai muito além disso. HILTON BESNOS
Escrito em dezembro de 2003
Por esses dias, no ônibus, meu filho Miguel, de 10 anos, me disse que não gostava da música “Adeus ano velho, feliz ano novo”, porque achava um desrespeito, uma desconsideração com o ano que se foi. Refleti sobre o tema, e realmente o Mig tem razão: é como se desprezássemos 2003, como se de repente, pela passagem do tempo tentássemos esquecer o que de bom aconteceu. Pensei mais, que as nossas histórias, as nossas conquistas, as nossas tristezas, nossos momentos de prazer, de ternura, de afeto e de carinho, toda a nossa vida se constrói no dia-a-dia, através das nossas ações e de nossos pensamentos. O Miguel tem razão, é um desrespeito conosco mesmo e com quem vivemos parte das nossas vidas. Não devemos dar adeus a 2003, mas trazê-lo junto a nós, em nossos cuidados conosco e com as pessoas as quais amamos; em 2004 reconstruamos um 2003 no que de melhor ele teve, especialmente em nossas habilidades para lidarmos com revezes e a sabedoria que cada um de nós acumulou em 2003 e anteriormente.
Muito obrigado Miguel por ter-me ensinado essa lição, e que ela possa iluminar a todos em 2004.
(No caso, 2011)
Fonte: http://www.flickr.com/search/?q=ano+novo&z=e&page=2
Às vezes a passagem do ano vira clínica: iremos, finalmente, procurar o psicólogo, a psiquiatra, faremos o nosso tão temido exame de próstata, faremos uma lipoaspiração, colocaremos botox, malharemos, teremos não mais que dez por cento do nosso peso corporal transformado em gordura, começaremos um regime rigoroso e check ups serão realizados com a regularidade e com a disciplina de um monge. Às vezes a passagem do ano vira esporte, academia, e então faremos pilates, caminhadas, alongamentos, bike, ball alongamento, experimentaremos swásthya yôga, mesmo jump não está descartado. Às vezes o ano novo vira esporte coletivo, e dê-lhe futebol, volei, basquete, et caterva, ou, quem sabe, tenis, natação, alguns esportes mais individuais. De todo modo, uma coisa é definitiva: na passagem do ano pensamos em nós. Desejamos que a vida do outro seja melhor, e, assim como a passagem do tempo, pretendemos que, por algum desígnio isso se concetize. Nunca ficamos tão exotéricos, tão midiáticos quanto na passagem do ano, não importa de que ano, não importa que idade se tenha. Os desejos de final de ano são sempre individuais, com as devidas concessões às famílias de nossos queridos amigos, parentes, e assim por diante.
Poucas vezes, contudo, pensamos que um objetivo sem plano é apenas desejo. Se esquecemos disso, esquecemos mais ainda de que, como disse com enorme sabedoria minha querida e agora aposentada colega e amiga Ana O., o presente é o futuro de ontem. Sempre pensamos para o que virá, mas poucas vezes nos detemos a imaginar o hoje como o projeto de ontem. Dentro do mundo pontilhista, anárquico, consumista em que vivemos, me vem à mente que talvez um bom projeto para o ano seria nos apoiarmos em três eixos: conhecimento, ética e compartilhamento. Nossos projetos individuais poderiam, assim, ser infinitamente melhores se o outro fizesse parte dele. Se víssemos na palavra parceria um pouco mais que uma proparoxítona, já teríamos algo mais interessante para pensar e tentar organizar. Se abandonássemos um pouco, não muito, só um pouco, nossa compulsão a vaidade irrefletida, já teríamos um ponto de partida, uma referencia para melhorarmos não só o nosso mundo, como o mundo de todos. Isso requer bem mais que projetos individuais. Temos de tentar projetar nossas ações como em rede, onde há uma partilha, uma co-participação do outro, daquele mesmo outro que, inúmeras vezes ignoramos ou fingimos ignorar.
Talvez esse seja o principal projeto do ano novo: usar o nosso conhecimento, a nossa ética e o nosso sentido de compartilhamente como se fosse uma bandeira a ser empunhada. Realmente nos importarmos e nos envolvermos com algo maior do que implantar botox ou silicone ou praticar pilates. Não que isso não tenha sua relevãncia, e, afinal, ter uma consciência dentro de um mundo midiaticamente espetaculoso não é tarefa fácil. De todo modo, não vou fugir à regra: um bom ano novo, e, especialmente, um novo ano novo. Não apenas quantitativo, mas qualitativo, portanto, realmente um novo ano novo. HILTON BESNOS
Para Ana Paula Umeda
Eugene Atget. Quem de nós, simples mortais, já ouviu falar dele? Provavelmente vimos algumas das cerca de dez mil fotos com as quais nos brindou a arte deste francês nascido em Libourne, França, no ano de 1857 e falecido em 1927. Passou vinte e cinco anos fotografando a Paris do final do século, criando uma coleção sólida e coerente. Uma obra uirbana. Quando morreu, só e abandonado, apenas um ano antes seu talendo havia sido descoberto.
Quem vê as fotos de Atget vai às raias das reminiscências, é como se estivessemos vivendo a Belle Èpoque ou como se Edith Piaff ou Carlitos fossem aparecer em algum daqueles cenários, cheios de lirismo, poesia e dramaticidade. As cidades, como os homens, se modificam, e isso podemos perceber claramente vendo e especialmente refletindo sobre a obra de Atget.
A sensibilidade da câmara não acontece sozinha, e não sei exatamente porque Atget me lembra um pouco da dramaticidade cotidiana de Buenos Aires. Há muito de tango nas suas fotos, há toda uma extensa releitura que pode ser efetivada a partir das imagens captadas pelo artista. Há, ali, um pouco da alma francesa, das suas desilusões, das suas desventuras, do seu povo pobre mesclado em uma história de dor mas de intenso orgulho. Há muito de Piaff.
A arte de fotografar as cidades, de colher seus aspectos mais intrigantes diz respeito, em meu entender, com a possibilidade não apenas de captar um documentário, mas um cenário real onde as pessoas se encontram, se desencontram, cruzam entre si sem se olharem, com o fluir da massa, com a fixação de um conceito próprio que tem a ver com a cultura da cidade. São Paulo, por exemplo, é uma cidade? Não, é muito mais do que isso, é uma concretude que envolve uma cultura moldada por cidadãos de todo o mundo, de gente que buscou aqui o que muitos buscaram em Nova York, em Paris, em Londres. São Paulo não é uma megalópole porque é uma cidade quase ilimitada, mas pelo acolhimento à multietnia, aos costumes, às ideologias que, entrecruzadas, foram dando um rosto, um cenário, uma vocação, nichos de cidadãos, onde se mistura o absurdamente rico e o miserável, famílias que migraram do Japão, da Europa, da América Latina e que foram construindo uma arquitetura social, econômica, financeira e humana.
Uma rede fantástica criada a partir da cotidianeidade, das dificuldades, das línguas tão distantes do nosso português. A história das cidades me fascina, mas não estritamente do ponto de vista histórico e documental, mas também do ponto de vista da ficção, das irrestritas possibilidades que temos de aprender sobre e com o outro. Aprender muito mais do que a escola ensina; aprender sobre a vida.
Há um tempo atrás, recebi um comentário de Ana Paula Umeda e a partir daí, fui conhecendo sua obra fotográfica. Então resolvi escrever aqui, porque a sua arte me levou a buscar saber quem era Eugene Atget e, de repente, meu inconsciente impulsionou-me para uma Paris que só conheço de filmes, todos eles antigos mas geniais. A arte de Ana Paula Umeda me mostrou uma São Paulo que eu amo e que já trilhei; sua sensibilidade homenageia Atget, e isso fica claro nas sua fotos.
Que bom que pude conhecer, através do BLOG DO BESNOS Ana Paula e Eugene Atget. Essa a arte da aprendizagem, que nos leva a sermos mais sensíveis, mais solidários e, especialmente, de podermos compartilhar o que, pelo talento, deve ser compartilhado. HILTON BESNOS
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.