Vamos usar um nome fictício, Ricardo, para designarmos um aluno que apresenta graves problemas em relação à sua aprendizagem; os anos passam e ele permanece no mesmo nível de estudo, sem qualquer progresso digno de nota. Seu conhecimento vai um pouco além do nível da alfabetização, mas ele não consegue escrever de uma forma mais coerente, apresentando também dificuldades em matemática, português e ciências.
Poderíamos iniciar aqui uma peroração longa a respeito do sistema de ensino, das dificuldades sociais, ou ainda escrevermos sobre os casos de exclusão escolar, mas não é isso que agora importa.
O que me chama a atenção é o fato de que, para Ricardo, um “judeu” representa um Outro, um Terceiro absolutamente estranho, mas de todo modo hostil, ameaçador. Quando Ricardo me perguntou, pela primeira vez “o que era um judeu”, sua voz era de total curiosidade, mas de inegável desconfiança. Por outro lado, em diferentes oportunidades ele manifestou que “não gosta de judeus”, embora pouco ou nada sabe a respeito de judaísmo.
Para P. Weill, o corpo fala, e de forma bastante clara. Lembro disso porque o gestual e o tom de voz de Ricardo, quando ele fala a respeito de judeus, é francamente desrespeitosa, como se ser judeu fosse algo quase que achincalhante ou, ainda pior, como se “judeu” fosse alguém que se pudesse comparar a um objeto, a uma coisa, algo do qual, mesmo sem conhecer, deseja afastar-se.
Alguns, sem dúvida a maioria dos meus colegas, dirão que o comportamento de Ricardo será sempre pifio, e que seus argumentos não terão sentido, não devendo, portanto, ser levado a sério. Afinal de contas, a opinião de Ricardo em relação a qualquer assunto não importa, porque ele é semelhante a uma sombra que anda, em termos sócio-cognitivos. Ele está sempre por aqui ou por ali, gazeando aulas, vendo o tempo passar e se dando, por vezes, ares de cidadão do mundo, quando passa (bem e muito) longe disso.
O argumento da desqualificação, no entanto, não é bem vindo pois, do mesmo modo que Ricardo pode ser desqualificado no que respeita às suas próprias construções identitárias, é exatamente isso que ele usa para desqualificar judeus, de modo geral. Portanto, há neste tipo de argumentação uma meia-verdade o que, convenhamos, sempre é pior que uma mentira. Dentro dessa visão, é interessante constatarmos como somos permissivos com idéias totalmente que seriam repudiadas caso quem assim pensasse tivesse uma parcela mínima de poder. Em inexistindo empoderamento a essa pessoa, tudo cai na vala comum da ignorância e no descrédito genérico que impomos àqueles que, em nossa avaliação, nos são, por vários motivos, inferiores.
Ontem à noite, por exemplo, os alunos da Educação de Jovens e Adultos da EMEF Chico Mendes, onde trabalho, foram assistir, com seus professores uma bela peça de teatro na Casa de Cultura Mário Quintana. Duas colegas levaram digitais para registrar o encontro dos alunos com o Teatro. Uma delas convidou-me e a Ricardo para que fizéssemos uma foto. Ele se desviou e disse, voz bem alta: “eu não vou tirar foto com ele (eu, no caso), porque ele é judeu!”, e saiu para o lado, com um sorriso meio contrafeito e com um ar de deboche. O imaginário, portanto, é referencial nessa situação. Em algum momento de sua história pessoal, seja por experiência própria, seja por circunstâncias, seja por influência de terceiros, Ricardo associou “judeus” como uma categoria de pessoas não muito confiáveis, urdindo daí sua repulsão e/ou seu inconsciente temor aos mesmos, havendo tal sentido atribuído uma visão perigosa ou perturbadora em relação a esse Outro tão distinto dele próprio. E tão desconhecido, na mesma proporcionalidade.
Sem dúvida as relações subjetivas/objetivas que construíram essa visão anti-judaica foram muito competentes, se considerarmos que somos muito mais motivados em nossos desejos, culpas e exaltações pelos sentimentos e pelas significações do que pela razão. Esta nada mais é do que a ponta do iceberg, mas nosso consciente e nossas emoções é que regem nossas estruturas identitárias.
Ao imprinting cultural se agregarão as convivências com os outros, com nossos parentes, com nossa comunidade, com os nossos pares; tais relações, sempre assimétricas e não-lineares compõe um painel multifacetário e, sem dúvida, responde pela estruturação de nossas visões de mundo, além de fornecer um manancial dentro do qual delinearemos nossas linhas argumentativas e ideológicas, mesmo que não nos demos conta disso. Assim, o imaginário é bem mais do que pensemos, especialmente em termos de formação identitária.
Ah, sim, Ricardo não assiste minhas aulas, pelos motivos já declarados, ou talvez por outros que eu desconheça mas, sem dúvida, o fato de eu ser judeu não ajuda na melhoria de sua freqüência. É, no mínimo, perturbador, se pensarmos que Ricardo trabalha em um local em que tem contatos com pessoas claramente pertencentes á classe dominante. Para eles, assim como para alguns aqui na escola, Ricardo é invisível. Tudo isso que estou escrevendo não tem para muitos, um argumento tão forte para que eu escreva sobre o fato.
No entanto, como judeu e como educador, o repertório comportamental e ideológico de Ricardo é digno de nota, não por uma ameaça real, mas pela continuidade de um tipo de pensamento que infelicita vários povos no mundo e que está na origem das guerras étnicas e de extermínio de crenças, de povos e, especialmente, de seres humanos. Aqui, o não-importar-se é justamente sacralizar o sentido do não-sentido, a vitória da violência sobre a paz, a categorização do humano como um produto a ser descartado na primeira esquina, a partir de uma mirada estreita do que seja a convivência, a tolerância e a solidariedade.
Enquanto os dominantes pensam, os dominados agem, mas sempre de acordo com a submissão à qual são clientes de modo tão banalizado que não importa mais pensar o quê e o porquê do que se pensa e do que se faz. De qualquer modo, nesse sentido, o fazer é bem menos do que uma autonomia vigilante recomendaria. HILTON BESNOS