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O ALUNO NHÉ NHÉ NHÉ SÓ SOBREVIVE DENTRO de uma estrutura que o trate como coitadinho e quando o sistema é adepto da política do blá blá blá. Dentro do sistema blá blá blá, o pobrezinho do aluno é um ser em permanente risco social, a escola é um útero, professores são pais e professoras são mães que os devem proteger dos males do mundo. Toda e qualquer questão do mundo real (currículo, aprendizagem, responsabilidade, cooperação, esforço pessoal, atenção, solidariedade, etc) deve ser minimizada, até que cheguemos ao improvável. 

Um exemplo claro aconteceu por esses dias na escola, comigo e em sala de aula, no noturno, na EJA. Três alunos (?), daqueles que tem barba na cara entraram em aula, sendo que um deles entrou em sala de aula com um skate. Juro. Com um skate. Esse não fez nada durante dez minutos, a não ser mexer em seu celular. Um dos outros três, que já havia saído na aula anterior com uma grosseria inominável, tendo abandonado a aula por seu gosto, abriu o caderno mas nada fez. O que estava sentado atrás dele, para participar do grupo, igualmente adotou uma atitude debochada. 

Às tantas, perguntei porque os dois não estavam trabalhando em aula, e eles responderam “perdi o que tu disse”, “tu dita muito rápido”, “não entendi” e por aí afora. Eu estava ditando a respeito de radiciação. Todos os demais alunos estavam atentos e copiando o que eu ditava, sem nenhum problema. O terceiro aluno, o do skate, permanecia mexendo no celular, com sua mochila fechada. 

Como nenhum dos três de barba na cara estava com a mínima vontade de fazer coisa alguma, disse para um outro aluno chamar alguém da direção ou do soe – serviço de orientação educacional – para que os alunos fossem fazer nada em outro lugar, mas não na minha aula. Sobe a vice-diretora e, em princípio, após ver um dos alunos jogado para trás com o caderno escancarado, outro igualmente sem fazer nada, e o terceiro, ainda mexendo no celular, com o skate ao lado, pergunta o que estávamos fazendo. Eu explico (sempre os professores explicam, não é verdade?) e a resposta que escuto da mesma é a de que “pessoas diferentes escrevem em ritmos diferentes”. Ora, minha aula não é de alfabetização, e tais alunos escrevem muito bem. 

A questão não é se os alunos escrevem ou não escrevem bem. A questão é a atitude de deboche, de non far niente, de ausência da mínima possibilidade de contribuição para um ambiente de aprendizagem, a possibilidade de usar o professor em aula como se ele fosse um nada e a escola como se fosse um clube. Ver a direção da escola como algo que pode ser usado, manipulado, transformado em algo ridículo, tolo, inconseqüente, como se a instituição fosse algo que estivesse ali apenas para cumprir o papel que ele, aluno, determina de acordo com o seu tempo e a sua vontade. Em suma, tratar a escola como um nada ou, melhor ainda, como um lugar no qual o aluno trata a educação como algo que está ali em condição de submissão à sua vontade. O conhecimento como um nada. 

Mais: a certeza de que não haverá qualquer espécie de conseqüência mais compatível com o seu comportamento. Que o que é público, de certo modo, abençoará as suas vontades, deles, alunos, a sensação de que os professores, a escola, lhe são submissos e, por claro, o desrespeito ao profissional. É o esquema blá blá blá que acaricia, que beneficia, que acolhe o aluno que é nhé nhé nhé, relapso por opção e néscio por conveniência. 

Eles, alunos (pelo menos teoricamente alunos) sabem, de larga experiência, que tudo não passará de uma conversinha funesta, regada a possíveis fatores externos que explicarão o que eles fizeram, desde as perspectivas mais remotas às mais tolas, e que isso tudo será engulido on board

O que me deixa muito aborrecido. 

Enfim, após os rapapés necessários e as caras feias indispensáveis, saem os três heroes of marginality e eu consigo continuar, sem perturbação, a minha aula; inclusive alunos que estavam quietos começam a perguntar, se mostram interessados… No final da noite, a direção me informa que “quer conversar comigo na quinta-feira” a respeito dos três alunos. 

Sinceramente, não me interessa saber. O que me interessa é que eles venham pra minha aula a fim de estudar, e não a fim de bancar os rebeldes sem causa e receberem tratamento VIP. Só isso me interessa. 

Não tenho paciência para alunos nhé nhé nhé. Não os chamo para minha aula, não me considero responsável por eles. Converso e tenho um ótimo relacionamento com alunos que tem dificuldades para aprender, mas que tem, especialmente, uma relação honesta com a escola e comigo. Nunca me preocupei em explicar, em reesplicar, em tentar novamente, e os erros dos meus alunos não me colocam em estresse. 

Só não quero é vagabundagem pura em minha sala de aula. Muito simples, muito claro, e isso é digo (em outras palavras e através de ações) já no primeiro encontro que tenho com meus alunos. Me nego a ser pai ou mãe ou tio ou responsável por quem tem barba na cara ou já menstruou há muito tempo. Simples e direto, consigo ser respeitado por todos, porque não enrolo, não fico pedindo desculpas, não dou a cara a tapa. Não bato, mas não me coloco passivamente na posição de mártir do mundo, nem tenho qualquer vocação para ser Cristo ou Madre Teresa de Calcutá. 

Muitos não entendem a minha posição, que é de responsabilizar cada um por seus atos. Ser humano e dialógico não significa, de per si, ser tolo e leniente. Talvez por isso minhas turmas me respeitem; sabem exatamente os limites, mesmo as brincadeiras e entendem que um clima de aprendizagem não é um clima de barbárie. Prefiro que seja assim, para não ser confundido com um professor-marionete. Quero fazer a diferença e, por incrível que pareça, para isso temos que ser justos, e não, efetivamente, hordas de camelos a peregrinar pelo deserto reclamando da água que não veio. HILTON BESNOS

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23
Ago15

Utopia pós-feriadão

por Hilton Besnos

EM 2011

Após um feriadão que iniciou no dia 09, estamos retornando ao trabalho hoje. Pois bem, aqueles professores que tem um dia de folga nas quartas-feiras, não trabalham desde o dia 08 (hoje é treze de abril). Convenhamos: é um senhor feriadão, para todos os gostos. No mínimo dos mínimos, quatro dias sem ir para a escola. Pois hoje, bem no início da manhã, por volta das 7 h 35, o que mais escuto na sala dos professores são reclamações. O feriadão foi curto – Ah, que inferno ter de começar tudo de novo – Não gosto de feriado porque perco meu ritmo de trabalho – Hoje quando me levantei e vi que tinha de ir à escola, me estragou o dia – Como foi bom ficar longe daquelas pragas – e assim por diante.

Não é um bom modo de iniciar uma volta de feriado, mas o que escrevi acima não ocorre somente nos retornos. Se você pensar que dali a minutos estará em sala de aula, ensinando adolescentes, terá claramente que esses comentários não levam a nada e que, além disso não existe, nesses professores nada mais além do ranço e do que entendem ser uma obrigação (lecionar), um ônus, um peso enorme a ser sustentado em seus ombros. Reclamam do próprio ofício, bem como de seus alunos o que não melhora a sua relação com o seu fazer profissional. Se não me engano, Confúcio disse: “escolha um trabalho que ama e não terá de trabalhar um único dia em sua vida”.

É claro que talvez alguns dos leitores pense que estou exagerando: é possível, se pensarmos somente na situação descrita; aliás, é bem possível que pense assim. Ocorre que isso é um padrão, uma linguagem já incorporada, uma tábua de argumentação negativa na qual muitos dos meus colegas se apoiam. Dar aulas não é prazer, acaba se transformando em uma tortura. Quando interiorizamos tal padrão, passamos a ser instáveis, infelizes, sonhando com um oásis como se sonhar fosse suficiente.

José Saramago, convidado para o Fórum Social Mundial de Porto Alegre, cujo tema era “A utopia é possível”, confessou que não gostava desse termo, utopia e que portanto, estava na contramão do evento. Disse Saramago que a idéia de utopia era paralisante e que, antes de sonharmos, teríamos que enfrentar as realidades e que ela própria, utopia, dependia menos de recursos retóricos e mais de ação. Fazendo uma analogia, de que adianta sonharmos e especialmente nos estressarmos se o local onde trabalhamos ou os nossos alunos não são nem de longe os sujeitos cognitivos que pregava Piaget, enquanto fazia suas observações tão aplaudidas entre crianças suíças de classe média e alta?

Será que merecemos nos desgastar bem mais do que o que já fizemos? Será que ainda somos tão dependentes do pensamento mágico que falava Freire ou será que elegemos o caminho da permanente reclamação como o melhor a ser seguido? Tenho a impressão de que Saramago nos socorre de modo bastante eficaz, assim como Confúcio já o tinha feito séculos antes de Cristo nascer. Do mesmo modo, parece que esquecemos nossa capacidade de ouvir, e mesmo de ficarmos quietos, atentos, o que reduz enormemente outras habilidades.

De toda forma, você pode optar por buscar realizar a utopia ou ficar reclamando na espera que o seu circuito interno queime de vez. É bom não esquecer que, ao contrário do que muitos pensam, não é a razão que nos comanda, mas nossos sentimentos e emoções (a parte submersa do iceberg, que é bem maior que a emersa). Reclamar é o mesmo que buzinar em um engarrafamento. Enquanto pensamos sobre isso, talvez devêssemos sossegar nossas idiossincrasias e raivas e melhorar um pouco mais o ambiente geral, exercitando nossa gentileza, nosso bom humor e nossa inteligência emocional, o que seria bem melhor do que envenená-lo com nossas neuroses e achaques pessoais. HILTON BESNOS

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23
Ago15

Trabalhar enobrece, não é?

por Hilton Besnos

Só é obrigação o que não nos interessa; o mundo do trabalho é prenhe de coisas a fazer, de pouco tempo para fazê-las e de chatices inexpugnáveis. É claro que podemos ter muito prazer no que fazemos, podemos realizar muito, mas sempre temos alguém ou alguma instância que nos criteriza o que deve ser feito. Normalmente as compensações pessoais dizem respeito a como ou de que modo realizamos nossas atividades, mas isso não invalida sabermos que o mundo do trabalho é um mundo contratual, pactuado, com regras mais ou menos fixas e que, dependendo do que fizermos, segue um modus fascendi industrial.

A atividade regida pela industrialização é onerosa à nossa saúde, aumenta nosso estresse, nos põe em convívios que gostaríamos de evitar e nos escraviza ao relógio. Contamos os dias para as férias e, normalmente, não sabemos o que fazer com elas, senão nos prepararmos para mais um ano de estresse. Descansamos o suficiente para começarmos de novo, e nos desorientamos minimamente em relação à bússola que sempre aponta as mesmas rotinas. Por isso, essa desorientação é extremamente benéfica à nossa saúde. Se não à física, com certeza, à mental.

Nos horários de intervalo de nossas atividades do que falamos, sobre o que pensamos? Sobre as mesmas atividades, os mesmos serviços, os mesmos problemas. Se não fazemos isso de modo voluntário (ou involuntário, dada a rotina das nossas ocupações), sempre haverá alguém a nos lembrar. Um diretor, um supervisor, um orientador, um chefe, um colega.

Vivemos uma vida na qual o trabalho, muitas vezes opressivo, é nosso mais caro e mais estimado valor. Há workaholics por todo lado nos lembrando, nos alertando, nos dizendo, nos insinuando a respeito do que temos de fazer, do que deveríamos ter feito, do que foi feito de modo errado ou das nossas omissões. Tão certo quanto o sol nasce e se põe, sempre haverá alguém a nos lembrar, a nos martelar impiedosamente, a anotar, a registrar com uma memória implacável as nossas obrigações.

A essas pessoas, chamamos de responsáveis.

Nas escolas, um dos ambientes mais insalubres que conheço, há, além disso, o fenômeno da circularidade. No mais das vezes as conversas são sobre os mesmos assuntos. Como se trata de um mundo feminino e as mulheres são socialmente injustiçadas, há um sentimento de culpa que perpassa tudo. Há professoras que querem ser mães de seus alunos, e o caminho óbvio para isso é a subjetivação elevada a seus píncaros.

Por outro lado, a tão declarada objetividade masculina se perde entre tais culpas, se debate entre problemas caseiros e o psicologismo, não raro utilizado como bandeira ideológica.

O matriarcado sufoca o profissionalismo, especialmente se não houver um esforço bastante grande quanto à qualificação do corpo docente. No mais se troca a teoria pela empiria e o objetivo pelo subjetivo. Ao analisarmos uma questão objetiva, outras entram em foco: “mas o aluno tem problemas na família”, “ele foi mal, mas tem potencial”, “ele só está pensando em namoro”, “o pai dele é alcoólatra”, e assim por diante. E tudo vira um enorme bazar, onde o conhecimento é barganhado em relação ao psicologismo de araque e ao serviço social de duvidosa qualidade.

Duas situações:

Primeira. Há mais de quinze anos atrás, em aula em uma escola do município, uma professora me falou que não estava mais suportando a falta de profissionalismo e o caráter de improvisação e de precariedade da referida escola. Disse-me que, para ela, era inviável continuar lecionando em tal escola, porque entendia que o profissionalismo e a qualificação deveriam ser levados a sério. Dois meses após tal conversa, ela se exonerou. Ela havia ingressado por concurso público, e foi coerente com seu próprio sentimento, com seu sentido enquanto educadora. Ponto.

Segunda. Ano passado havia vários alunos na escola onde leciono que tinham visivelmente problemas psicológicos graves. O serviço de orientação escolar tentou encaminhá-los para uma instituição social que atende adolescentes em situação semelhante àqueles que a escola encaminhou. Aí simplesmente a instituição devolve para a escola o seguinte argumento: não podemos atender todos, então a escola deve escolher aqueles casos mais graves e nos encaminhar. Ora, escola não é serviço psicológico nem psiquiátrico nem hospital. Pergunta-se como pode a escola decidir nesses casos? Não pode, não é? Simplesmente não pode. Ponto.

As duas situações mostram como se lida com questões profissionais. Na primeira há coerência entre discurso e fala, entre comportamento e ação. Na segunda há uma situação que beira a mais rematada irresponsabilidade. Entre esses dois pólos a escola se debate, e o estresse provocado por situações díspares atravessa no dia-a-dia as atividades de quem ensina e de quem aprende.

Questões como essas faz com que pensemos em nossas atividades, praticamente todo o tempo. São angústias, temores, desconfortos com os quais temos de lidar e não sabemos como iremos reagir aos mesmos. É, portanto, indispensável que saiamos de vez em quando para reativar nossas baterias, talvez não o suficiente para enfrentar tais batalhas do dia a dia contratual que todos vivemos, imersos em uma sociedade que cobra o tempo todo e que proporcionalmente devolve poucos prazeres.

Vivemos em ambientes totalmente mapeados e instáveis a partir de estruturas que podem ser mais flexíveis ou mais rígidas. É necessário sair um pouco disso, antes que o workaholic mais próximo nos fatie e nos jogue dentro do seu mar de obrigações.HILTON BESNOS

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22
Ago15

Heisemberg e o conhecimento

por Hilton Besnos

 

Até onde o conhecimento nos leva? E enfim, para que caminharmos? A própria caminhada nos ensina a andar e sabermos onde queremos ir ou, pelo menos, onde pretendemos chegar. Com o tempo e com o exercício de andarmos, vamos acumulando experiências, de tal modo que podemos reconhecer os atalhos, as curvas, as subidas mais ou menos íngremes, onde estão os regatos, as fontes, quando temos de mergulhar para atravessar um riacho. Nos movermos em relação ao conhecimento nos torna aprendentes mas, hoje em dia, esse caminho não é algo parecido com a reta que une dois pontos, partindo-se do mesmo plano. Alternativamente, temos vários planos que se fundem, que se atravessam, e os objetivos parecem, muitas vezes, esfumaçar-se. De certo modo, há uma névoa em tudo isso.

A difusão parece reinar em meio aos exercícios que fizemos para buscar algo que entrevemos, em alguma instância do futuro. No entanto, os planos se atravessam, o que é uma característica do nosso tempo atual: fossemos modernos e não pós-modernos, teríamos a certeza de que, trilhado um determinado caminho, atingiríamos um determinado lugar. Hoje vivenciamos instabilidades. Nossa época é francamente de consumidores, e não de produtores, como explicita Bauman. Confundimos situações que estão em mercado com situações que não são passíveis de ser negociadas, conforme lemos em Dany-Robert Dufour (1). A lista é grande e de qualidade. Pessoas que aprendem, mas aprendem o que, por que e para que, talvez essa devesse ser a pergunta mais correta a ser feita, uma pergunta que não pode prescindir de valores (axiologia).

Parece, contudo, que isso não importa muito.

De todo modo, temos de imaginar pontos ou objetivos que se encontram em movimento. Contudo, a incerteza e a instabilidade em um mundo voltado para o consumo nos faz lembrar o que, em 1927, Heisemberg concluía ser o princípio da incerteza, no que trata de física quântica, a das partículas elementares que constituem a matéria. Segundo o mesmo (2),  “É impossível conhecer simultaneamente e com exatidão a posição e o momento de uma partícula.” Por momento entenda-se o produto da massa pela velocidade.

Embora não se investigue a física quântica aqui, podemos traçar alguns paralelos, quando pensamos no conhecimento e, especialmente no aspecto social do mesmo. Estudar é um valor, mas também é algo que visa a melhoria de nossas vidas no sentido prático. Conforme já o diz Domenico di Masi, se duas pessoas virem o mesmo filme, sendo uma delas ignorante e a outra não, sem dúvida não terão assistido o mesmo filme. Sabedoria provinda da experiência. No momento em que não nos arriscamos ao erro, a flutuar entre possibilidades, o conhecimento se afasta, se embarafusta em alguns dos vários planos pelos quais pretendemos vislumbrar melhores possibilidades.

Precisamos, antes de tudo, mesmo antes do objetivo, aprender a valorar. Saber intuitivamente que água é para ser bebida, o que nos leva ao risco de navegarmos entre as incertezas. Para isso se aprende, para nos tornarmos seres mais independentes do que antes éramos. Se não entendemos isso, transformamos o saber em uma mercadoria e a vida nos passará in albis. Pequenos prazeres, os de sempre, não mais que isso, uma vez que não nos dispomos ao risco. Por isso a aprendizagem, seja ela qual for, pode ser mediada por terceiros, mas somente quem aprende consegue corporal e mentalmente aquilatar as transformações que ela ocasionou. Em tudo somos seres encarnados. Mesmo nas buscas metafísicas somos encarnados.

De toda forma, caímos aqui no tipo de conhecimento que interessa. Ele é socialmente desejável, é relevante do ponto de vista econômico, é produtivo, tende à pesquisa e à troca de informações. Esse conhecimento é o que, em tese, faz com que as coisas aconteçam da maneira como acontecem. Faz com que pessoas casem e tenham filhos, faz com que estudem e busquem melhorar as suas vidas, ter um emprego que as valorize, ter o que dizer aos mais jovens, ter efetuado algo socialmente validado pelo discurso médio. Em termos mais estritos, é o conhecimento que interessa aquele que nos leva a perceber o outro enquanto diferente de nós, mas respeitável. É o que nos faz trabalhar em grupo, em equipe, é o que mantêm o status quo, é o que nossos pais gostariam firmemente que fizéssemos.

Nem sempre, porém, é possível vislumbrar tal tipo de conhecimento, pois é necessário que haja uma sutil gradação social, um processo que se dá já a partir das vivências que temos em nossa família, nos grupos sociais em que somos pares, nas ideologias que estão postas como cachos de uvas para serem saboreadas ou cuspidas. Se não conseguimos entender tais situações dentro da multivariedade de planos em que estamos colocados, nossa tendência será a de resistir. E resistir de modo bastante claro e por vezes incisivo àquele conhecimento que nos leva à angústia, a termos de suplantar nossas dores, ao sacrifício do abrir mão de algo para obter o que se espera. O processo de aprendizagem é longo, exige por vezes preços altos e nem todos se dispõem a pagá-lo ou tem a capacidade de renúncia esperada. Nem sempre os objetivos, por outro lado, são claros (aliás, são encobertos na maior parte das vezes). Contrariamente ao que tínhamos como fixado, como erguido às custas de sacrifício para que pudéssemos, mais tarde, desfrutar de uma posição confortável, apresenta-se a realidade como flexível, instável, pontilhista, fugaz.

A sabedoria é encontrar, ao longo de um processo assim caracterizado, uma miríade de pontos de equilíbrio onde possamos nos apoiar, não mais que temporariamente, não mais que rapidamente, não mais que fugazmente. Talvez por isso as profissões de eleição social não tragam, de per si, as vantagens que queremos obter. Verifique-se: os parâmetros utilizados são os dos produtores em época de consumidores, de carreiras plantadas e feitas de maneira unidirecional em época de transições. Nunca precisamos tanto dos outros, pois na medida em que os planos de interseção mudam, igualmente necessitamos que os outros nos alertem dessas mudanças. Não é simplesmente estudar por estudar, mas saber as razões de porque estudamos. Converter o estudo, o processo de ensino e de aprendizagem em um padrão meramente capitalista é uma rematada tolice.

As profissões de eleição social não garantem mais uma real ascenção social, a não ser aquela aliada ao nome institucional. Ser médico hoje é tão-só ser médico hoje, e não mais ser, como há quarenta anos, um deus. Poucos acreditam em deuses atualmente. Talvez nem eles, deuses, acreditem piamente no que são ou deveriam ser. É possível que o parâmetro então deva ser igualmente alterado e é bem mais realista que façamos um investimento em áreas nas quais, além das promessas, possamos ter aquela velha e tão aprazível sensação de que fizemos algo com nossas próprias mãos e nos sentimos felizes por que o fizemos. Que temos habilidade para algo e nos entregamos a esse algo na medida em que nos capacitamos mais e mais no desenvolvimento dessa habilidade.

Não basta, então buscar o conhecimento como se ele fosse um dogma, um castelo, uma universidade reclusa em si própria, como se o conhecimento fosse a garantia de um título, mas sim que o conhecimento nos traga a felicidade de descobrirmos que somos capazes de, que podemos, que a nossa auto-estima não depende da opinião de a, de b ou de c, sejam a, b e c quem forem. É possível então que vivamos em um mundo no qual as materialidades tenham menor importância do que tiveram para os nossos pais. Eles, sim, vivendo em um mundo no qual a segurança material era um apanágio de uma carreira linearmente estruturada, possuíam tal visão do mundo. Hoje, uma visão de mundo atual requer a não-linearidade, a complexidade, a abertura em relação ao outro e às suas diferenças e uma singular presença criativa e de cooperação.

Nada do que se faz, se faz só, mas nada do que se faz em conjunto se faz integralmente em conjunto. Aprendemos sós, mas na presença do outro, na interveniência do outro. Conforme Maturana, não podemos mudar nossos padrões e nem as nossas estruturas. O máximo que o outro pode fazer é perturbar-nos. Em meio a tais perturbações crescemos para um mundo no qual o conhecimento é indispensável. Talvez agora estejamos mais próximos do que nunca do compartilhamento, senão por concessão, por necessidade. Ouçam um músico tocar em duo, em trio, em orquestra. Cada instrumento continua sendo um instrumento, mas o efeito da harmonia é esplêndido. É possível que possamos entender um pouco mais do humano na medida em que nos cerquemos de harmonia.

A música tem muito a ensinar-nos. HILTON BESNOS

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22
Ago15

Estudar é um exercício e dos bons e, sem dúvida, um grande diferencial na vida de todos nós, desde que o signifiquemos, atribuindo-lhe importância. Para muitos, contudo, estudar não é tão apreciável ou apreciado. No mais das vezes quem não vê aí uma possibilidade de crescimento, ou que não consegue mais do que discursar de maneira conveniente a respeito do estudo, acaba por privilegiar as práticas de modo bastante eloqüente. Aliás, nesse último caso, tais pessoas tendem a afastar-se do que consideram mera teoria, configurando às últimas um sentido às vezes próximo do pejorativo. Uma vez aprendido um ofício, deixam de se importam com os padrões teóricos que informam e configuram esse mesmo ofício, e mesmo as atividades que dele decorrem. Uma das profissões que se debate nessa falsa dicotomia entre prática e teoria é a dos profissionais da educação.

Quantas e quantas vezes já ouvi tal entendimento, no sentido de que prática e teoria são divorciadas, e de que mais vale a experiência que a qualificação. A frase predileta, de resistência é : “não adianta o sujeito ter mestrado ou doutorado se não tem a minha prática e experiência, ou se não consegue estabelecer o tipo de relação que eu tenho com os meus alunos”. A complementação é dizer “conheço meus alunos como a palma das minhas mãos, suas famílias, seus problemas, et caterva“.

Meias-verdades que vivem pululando por aí. É necessário admitir, queiramos ou não, que um curso de mestrado e de doutorado (e além dele, de pós-doutorado) são enormes qualificadores na vida profissional do educador e que, além de dar maior visibilidade ao mesmo, igualmente servem de porta de acesso para níveis de maior conhecimento, além de abrir novas possibilidades para circular e operar em GTS (grupos de trabalho) de maior excelência.

Por outro lado, a prática e a experiência e mesmo os relacionamentos em sala de aula melhorariam bastante se o profissional pudesse ter uma melhor qualificação dentro do seu âmbito de trabalho, mas isso nem sempre é visualizado pelo mesmo. Questões como prática e experiência normalmente se ancoram em temas metodológicos e didáticos, enquanto relacionamentos podem ser compreendidos, por exemplo, a partir das teorias das inteligências múltiplas de Howard Gardner. Isso, por exemplo, não irá desconstituir nem minorar, e aqui outra menção, ao que Paulo Freire denomina de leitura social da classe, se referindo à prática de sala de aula, a um exercício competente de diagnose que tem mais a ver com uma integração e um conhecimento do universo cultural, social e econômico dos alunos/estudantes do que com atividades rotineiras de diagnóstico curricular. Portanto, a grande confusão que se faz é entendermos que teoria e prática são excludentes entre si e, a partir desse equívoco, optarmos por um padrão paradigmático dissociativo. Tais padrões mantém-se em uma linha de argumentação ideológica que pretende a separação entre duas instâncias de pensamento. Há, então, uma falsa sensação de que podemos simplesmente optar. A falsidade não é, em si, a opção, mas o fato de que ignoramos movimentos no sentido da aproximação, dentro de um contexto que é denominado de rede.

Podemos pensar, então, a partir das questões de dissociação, nos seguintes termos: eu sou prático, eu tenho o domínio do meu feudo de conhecimentos e, portanto, nada mais preciso fazer para obter sucesso do que me manter em minha própria zona de conforto e ir tocando o meu ensino do jeito que a minha experiência diz para ser feito. E pronto. Por outro lado, sou extremamente teórico, e não importa muito se os outros não me entendem, porque, realmente, teoria é para poucos iluminados, de tal maneira que me encontro em um patamar superior de conhecimento. Os outros que subam até minha pessoa, se conseguirem. Ambas as posições transitam dentro de uma sumária dissociação, porque não conseguem se integrar de modo mais flexível.

Quando um professor diz que sua prática é suficiente para resolver as questões de ensino que ocorrem na sala de aula, talvez esteja falando outra meia-verdade, pois o processo todo se tornará razoável quando o aluno/estudante estiver aprendendo. No momento em que dissocio a posição do ensino com a posição da aprendizagem, estou operando dentro de linhas que se excluem entre si. Por outro lado, desavisado ou ingênuo o professor que entende que a sua prática educacional não se filia a qualquer gênero de ideologia pedagógica.  O fato de desconhecê-la, ignorá-la ou não se reconhecer como inserido dentro de uma linha de pensamento, inclusive instrumental, não significa que esteja criando algo novo, em termos de visão educativa. Assim é que os aspectos teóricos, antes de serem informados de modo tradicional, perpassam todo um background formativo ou, se quisermos, tais aspectos são constituem uma teia de relações estruturantes que  permeiam o chamado ato pedagógico.

O desconhecimento teórico não impede que as matrizes ideológicas do mesmo sejam profundamente formativas, informativas, adotadas  de modo natural (ou artificialmente naturalizado) e recebidas de modo passivo e acrítico. Portanto, quando um professor encara com certo desdém o empoderamento teórico de seu colega, está se integrando a uma certa ingenuidade intelectual que deveria, no mínimo, ser reconhecido e, sem dúvida, espantada. O privilegiamento ao fazer em detrimento ao conhecer ,  se reflete, por exemplo, no fato de que há uma massa considerável de professores que simplesmente relegam pesquisas educacionais a um plano inferior, usando o mesmo argumento de que conhecem suas turmas e, mais especificamente seus alunos, o que de modo nenhum invalida uma postura mais voltada para uma investigação criteriosa e com dados bem mais confiáveis que uma simples alegação baseada na cotidianidade da sala de aula. As bases concretas e especialmente as conclusões de um procedimento investigatório, não raro, são relegadas a um papel menor, o que é uma lástima. As culturas internas das escolas poderiam ter novas configurações se, além das tradicionais práticas de jogos de empoderamento de grupos em detrimento de outros, pudessem ver respondidas as seguintes perguntas, que poderiam integrar um plano articulado de pesquisa.

1) qual a produção intelectual de seus corpos docente e discente?

2) qual o grau de empoderamento teórico de seu corpo docente e como isso se reflete na aprendizagem?

3) de que modo o conhecimento teórico pode produzir uma melhoria dos aspectos didático-metodológicos no que se refere ao ensino e à aprendizagem?

4) qual o entendimento da pesquisa enquanto base confiável de dados privilegiadores das ações pedagógicas?

Essas são algumas perguntas que demandam pesquisa, afastando o execrável “achismo” por um lado, e concedendo possibilidades reais para um melhor conhecimento do próprio perfil da escola. De todo modo, trabalhos com base teórico-científica, além de qualificar o eixo pedagógico da escola, igualmente serviriam para tornar mais visível e explícito a própria cultura interna da mesma e de seus agentes educacionais, fornecendo pistas e/ou alternativas para minorar os males já tão conhecidos em nível de ensino e de aprendizagem.

Assim, o privilegiamento das questões teóricas não é simplesmente um modismo, uma tendência fugaz ou um motivo para estimular idiossincrasias locais, mas um esteio real para beneficiar a escola e suas práticas pedagógicas como um todo, além de beneficiar a nossa visão do processo educacional de modo mais amplo, bem como de seus atravessamentos. HILTON BESNOS

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22
Ago15

Zona de conforto

por Hilton Besnos

Zona de conforto é algo impressionante. Tem muito a ver com o que fazemos habitualmente. É aquele modo de vida, aquele cenário, aquele lugar que, por vários motivos, sejam reais ou imaginários, conferem a você a sensação de estabilidade. Não importa muito se você até não se sente bem na sua zona de conforto, simplesmente porque você se habitua a ela. A sensação de estabilidade nos acompanha pela vida toda, e possivelmente por isso seja tão complicado nos movermos para fora dessa zona, desse útero que escolhemos para nós mesmos. Sair dela significa enfrentar desafios de toda ordem, não importa se psicológicos, profissionais ou amorosos. Significa trocar hábitos, fugir da rotina: isso traz cenários de instabilidade, de dúvidas, e especialmente de troca de parâmetros, de molduras, de comodidades. É normalmente preferível reclamarmos contra o que temos do que lutarmos por algo diferente.

Domenico de Masi utiliza uma expressão, gossip cultural, que ocorre justamente quando a tecnologia ou os parâmetros sócio-culturais já estão já em mudança, mas continuamos pensando e agindo como os anteriores, aqueles que agora estão em modificação. Uma das questões, por exemplo, do homem pós-medievo, que continuava pensando com a cabeça de quem estava na Idade Média. Porque isso? Para mantermos nossa estabilidade, para nos reconhecermos, mesmo que esse reconhecimento implique em detectarmos a nossa própria paralisia e engessamento. Nossos modelos são ainda muito arraigados, e cada vez que efetivamente tentamos algo novo, diferente, temos uma sensação de instabilidade, de incerteza muito grande, então corremos para as nossas cavernas, para o aconchego do útero, que se nem sempre é confortável, pelo menos é confiável, no sentido de sabermos o que há ali. Sacrificamos ou não temos disciplina suficiente para implementarmos novos cenários porque nos habituamos com o que temos. Nossa alma envelhece, nosso corpo padece, mas somos incapazes de prestarmos atenção em nós mesmos. Os amores caem para a vala comum do esquecimento, as tristezas nos cercam como se estivéssemos ilhados, e os padrões aos quais nos habituamos são a única coisa que vemos.

Interrompemos nossa aprendizagem, e todo corpo vivo aprende, desde uma ameba até um sistema complexo. Não há aprendizagem sem o risco, portanto é preciso que seja criada a instabilidade do não-saber para que possamos continuar evoluindo como pessoas. Aprender, aqui, significa mover-se, predispor-se ao erro natural e, portanto, à crítica. No entanto, como vivemos em um mundo em que padrões já estão suficientemente assentados, não queremos errar, e, portanto, não queremos nos mover, porque a zona de conforto é algo que nos deixa estáveis. No entanto, a humanidade aprende todos os dias, todos os momentos, à todo instante, o que já seria bastante para que abandonássemos nossas pequenas idiossincrasias, nossas rotinas e passássemos a pensar de modo mais consistente em nós mesmos.

Talvez, se aprendêssemos mais, fôssemos mais felizes, mas isso implica, definitivamente, em sermos mais disciplinados, mais ousados em relação aos nossos próprios desejos, afastando o gesso que nos entorpece e o conforto que nos paralisa. HILTON BESNOS

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22
Ago15

Discursos autorizativos

por Hilton Besnos

Percebo que nada ocorre por acaso; não em termos de discurso. É claro que não descarto o que o direito chama de infortunística, que é um evento imprevisível e que, normalmente provoca danos pessoais, materiais ou ambos. Não é disso que se trata. Falo sobre as nuanças do discurso, das suas intencionalidades. O que isso tem a ver com indisciplina? Na minha modestíssima opinião, muito. O discurso, dependendo de quem ou de qual situação queira privilegiar, pode ser amplamente justificador, no sentido de autorizar alguém que faça parte de um grupo social a fazer ou deixar de fazer algo em razão ao atendimento desse mesmo discurso. É disso que falo. Portanto, o discurso justificador é, por via transversa, autorizativo; não que necessariamente o queira, mas porque pode vir a ser, sem maiores considerações.

Trate de dizer a um grupo social que ele é oprimido, que ele advém da miséria e que o mundo tenderá a mantê-lo na miséria. Aguarde um pouco, e o comportamento, se não for criticizado, tenderá ao atendimento do discurso. Em educação há um exemplo muito claro: o da predição. Um professor foi alertado de que uma determinada turma (chamemos de A) iria provocar problemas de toda a ordem, enquanto outra (vamos chamar de B) não traria trazer qualquer incomodação, seja do ponto de vista cognitivo ou social. O professor já entra predisposto àquela opinião, que ele entendia qualificada. Ao fim e ao cabo, as avaliações apenas confirmam o que o professor já sabia. A turma A se sai bem, enquanto a B amarga fracassos. Somente após, é informado ao professor que aquela opinião era totalmente tendenciosa e que, em verdade a turma A é a que não lhe traria problemas; o contrário em relação à turma B. É o que chamamos de predição, o mestre foi altamente influenciado por quem poderia, na época, fazê-lo. O comportamento do professor já havia sido moldado antes sequer de entrar em contato com as turmas.

Do mesmo modo, se alguém tiver uma justificativa eficiente para suas indisciplinas, para sua falta de colaboração, para o cultivo da própria ignorância, não será nada incomum se utilizá-la de modo eficaz para alcançar o resultado pretendido. Não educa quem faz florecer discursos convenientes, no qual a culpa social faz o papel de protagonista. Que você reconheça situações de vida opressivas, desiguais, injustas é uma coisa; que você autorize alguém através de um discurso condecendente, a proceder de uma maneira incorreta, desagradável, ilegal ou constrangedora vai uma grande diferença. Se alguém é parte de um sistema injusto, ensine-a a ser crítica, propositiva, de modo a que possa influir positivamente e de forma criativa no contexto social; eduque-a para que ela, por si própria, passe a ver alternativas e possibilidades até então não imaginadas, prefira isso a ser vetor de um discurso que, ao fim e ao cabo, traz pelo menos três efeitos mínimos e visíveis: (1) manter a pessoa aprisionada dentro de um ciclo de imposturas; (2) mantê-la dependente e sempre na defesa de seus interesses, esquecendo dos direitos alheios e (3) preservando seu estado de inação moral e ética.

Trate com respeito sua própria fala, mantenha com a mesma um liame forte com a realidade, afinal, influa ou não sobre o ambiente social, profissional ou familiar em que você se encontra, de algum modo você será ouvido. As falas, como aprendemos muitas vezes às duras custas, sempre tem um preço a ser pago. Há dívidas, contudo, que não são facilmente resgatadas. Pense no discurso, pense especialmente no que você pensa: sempre, a despeito de tudo, haverá consequencias. Certifique-se de que, se as mesmas forem graves, você sustentaria ou não sua posição. Afinal, respeito é o mínimo que você pode ter consigo mesmo. HILTON BESNOS

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22
Ago15

Fluidez e escola

por Hilton Besnos

Atualmente os sistemas de crenças, valores e de culturas são constantemente postos em xeque; há uma compressão do tempo e do espaço, bem como mudanças expressivas nos processos produtivos, o que faz com que o homem sinta-se desfiliado e, de certo modo, ausente de si próprio, imerso em um mundo simbólico, no qual perdeu sua capacidade identitária, alienando-a ao mercado ou participando de movimentos com regras rígidas e alinhadas.

Pois dentro de tais referenciais absolutamente fluidos, no dizer de Zygmunt Bauman, temos um local especial que se chama escola. É especial porque é um pólo cultural de formação e por isso o cotidiano da escola tem sempre uma face ideológica. O próprio verbo formar pergunta: formar quem, para que, com qual intencionalidade?

Essas perguntas, contudo, demandam algo mais do que palavras de ordem ou defesas de regimes de estudo. Suas respostas são o fundamento da escola, a diferença entre tratarmos a mesma como um centro de cultura, como uma área privilegiada de lazer ou um local utilizado pelos governos como um locus de retenção, controle e filtro social. A estigmatização é extremamente dura e excludente, mas isso não é uma novidade.

O dado atual é que muitos adolescentes com comportamento beirando a periculosidade social não estão nas ruas, mas sim nas escolas e é com eles que os professores tem de lidar no cotidiano, na maior parte das vezes de modo precário e empírico, porque não tem os apoios necessários para tais situações prementes mas totalmente previsíveis. Assim, a “inclusão escolar” tão justa e ansiosamente querida pela sociedade pode disfarçar uma sofisticada forma de controle social. Por isso responder a tais indagações é premente e faz uma enorme diferença na concepção pedagógica da escola e, sem dúvida, nas conseqüências sociais de tais escolhas.

Não perguntem aos que tem interesse político-partidário aberto ou velado na continuidade ou não de uma determinada estratégia educacional, mas sim aos professores, aos alunos e aos diretores de escola próximos e que você conhece. E, especialmente escute o que eles tem a dizer, sem ilha de edição ou cortes publicitários. Alienar-se não é confortável, pois os miasmas sociais persistirão, e você não vai poder evitá-los. Saber o que acontece nas escolas, sair de uma perspectiva meramente discursiva e semanticamente oca é o mínimo que podemos fazer se quisermos efetivamente uma escola digna, justa, de qualidade e que respeite a comunidade e a sociedade onde se insere.

Ou então, que se instale definitivamente o panóptico de Benthan. HILTON BESNOS

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22
Ago15

Cumplicidades necessárias

por Hilton Besnos

POA, 2010 - Sou professor de uma escola pública municipal em Porto Alegre, localizada próxima ao Parque Chico Mendes, a EMEF Chico Mendes.

Ali encontramos 23 computadores, dois pátios grandes (um coberto), 4 quadras de esportes, 1 refeitório industrial com ampla área de refeições, laboratório de informática, laboratórios de aprendizagem, de ciências,  de integração de ambiente urbano, biblioteca com aproximadamente 15 mil volumes, oficinas permanentes de dança, tae-ken-do, judô, informática, letramento, música, projeto escola aberta, funcionando aos finais de semana, projeto mais educação voltado para aulas de reforço. Além disso a escola conta com uma sala de vídeo e equipamentos multimidia

A escola possui uma direção e dois vice-diretores – um atuando no turno da manhã e tarde, atendendo o ensino regular e outro no turno da noite voltado ao ensino de jovens e adultos -, além de cerca de 1.300 alunos matriculados, promovendo encontros com a comunidade, recebendo grupos de teatro, promovendo passeios com os alunos e incentivando atividades culturais. Por outro lado, os alunos contam com os serviços de supervisão escolar e de orientação educacional que funcionam regularmente, bem como os serviços de secretaria.

A escola não reprime qualquer manifestação cultural dos alunos e tem um comportamento bastante flexível no que tange ao diálogo comunitário.

Do ponto de vista pedagógico, há cerca de 90 professores trabalhando nos três turnos dos quais, pelo menos 70 % possui cursos de pós-graduação, atendendo a todo o ensino fundamental.  Por fim, a escola possui três pavilhões, há uma área bastante arborizada e, a umas duas ou três quadras de distância, encontraremos a alentada e extensamente arborizada área do Parque Chico Mendes.   O que se percebe é que a EMEF Chico Mendes apresenta uma carta bastante atrativa de serviços não apenas para a comunidade escolar mas também para intercambiar comunitariamente e estabelecer parcerias. A escola também participa do orçamento participativo da cidade e do orçamento participativo da Secretaria Municipal de Educação. Daqui há alguns dias, em 18 de novembro, teremos novas eleições para a direção da escola. Em tal pleito participam todos os segmentos da comunidade escolar, que é formada por alunos a partir dos 10 anos e que tem direito a voto, por professores, por pais ou responsáveis pelos alunos e por funcionários que trabalhem na escola.

Pois bem. Não raras vezes olhando para os alunos em sala de aula, tento imaginar quanto seria o preço da mensalidade de uma escola desse porte e que apresentasse esses serviços e essas possibilidades de projetos. Se fosse uma escola particular e não uma escola pública. Essa é uma dúvida que em breve vou esclarecer, porque todos os serviços que a escola possui e presta à comunidade são públicos. É, portanto, o povo de Porto Alegre quem banca tais despesas, desde o papel utilizado até a iluminação; desde os serviços até as refeições de qualidade que são servidas diariamente nos turnos de trabalho, desde a dinâmica da gestão até o transporte dos alunos para atividades culturais. Quem paga somos todos nós, cidadãos contribuintes.

Por todo o que se disse, não se encontram problemas que justifiquem dificuldades maiores de aprendizagem. Com as dificuldades rotineiras, a escola vai cumprindo o seu papel. Embora o seu IDEB tenha melhorado sensivelmente, o que se nota é que a relação de aprendizagem não está se dando a contento. Não raras vezes os professores se sentem reféns de conflitos que se estabelecem diuturnamente no âmbito mais sensível da escola: a sala de aula e o desenvolvimento sócio-afetivo-cognitivo. Algo, ali, está emperrado. Alguns motivos são aparentes, outros, contudo, nem tanto. Procurá-los e apontar caminhos, sem paternalismos estéreis e sem culpas comprometidas pode ser um bom início de conversação.

Sem dúvida, há uma cultura a ser modificada, há comportamentos que não se adequam às melhores possibilidades de desenvolvimento de um ambiente educador. Talvez seja necessário, antes que tudo não apenas conversar, mas estabelecer bem mais que compromissos que no mais das vezes se esfacelam. Cumpre estabelecer cumplicidades. No mais das vezes a cumplicidade é bem mais interessante do que uma carta de compromissos. É bem mais fácil romper um compromisso que uma cumplicidade. Quem foi cúmplice sabe disso melhor do que ninguém.

Então, do fundo do coração, desejo que a nova direção, quando eleita, tenha o bom senso e a inteligência de estabelecer,  de modo bastante orgânico, cumplicidades que visem a melhoria dessa carta de serviços.

Amém. Assim seja.

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19
Ago15

Imaginários intolerantes

por Hilton Besnos

 

 


Vamos usar um nome fictício, Ricardo, para designarmos um aluno que apresenta graves problemas em relação à sua aprendizagem; os anos passam e ele permanece no mesmo nível de estudo, sem qualquer progresso digno de nota. Seu conhecimento vai um pouco além do nível da alfabetização, mas ele não consegue escrever de uma forma mais coerente, apresentando também dificuldades em matemática, português e ciências.

Poderíamos iniciar aqui uma peroração longa a respeito do sistema de ensino, das dificuldades sociais, ou ainda escrevermos sobre os casos de exclusão escolar, mas não é isso que agora importa.

O que me chama a atenção é o fato de que, para Ricardo, um “judeu” representa um Outro, um Terceiro absolutamente estranho, mas de todo modo hostil, ameaçador. Quando Ricardo me perguntou, pela primeira vez “o que era um judeu”, sua voz era de total curiosidade, mas de inegável desconfiança. Por outro lado, em diferentes oportunidades ele manifestou que “não gosta de judeus”, embora pouco ou nada sabe a respeito de judaísmo.

Para P. Weill, o corpo fala, e de forma bastante clara. Lembro disso porque o gestual e o tom de voz de Ricardo, quando ele fala a respeito de judeus, é francamente desrespeitosa, como se ser judeu fosse algo quase que achincalhante ou, ainda pior, como se “judeu” fosse alguém que se pudesse comparar a um objeto, a uma coisa, algo do qual, mesmo sem conhecer, deseja afastar-se.

Alguns, sem dúvida a maioria dos meus colegas, dirão que o comportamento de Ricardo será sempre pifio, e que seus argumentos não terão sentido, não devendo, portanto, ser levado a sério. Afinal de contas, a opinião de Ricardo em relação a qualquer assunto não importa, porque ele é semelhante a uma sombra que anda, em termos sócio-cognitivos. Ele está sempre por aqui ou por ali, gazeando aulas, vendo o tempo passar e se dando, por vezes, ares de cidadão do mundo, quando passa (bem e muito) longe disso.

O argumento da desqualificação, no entanto, não é bem vindo pois, do mesmo modo que Ricardo pode ser desqualificado no que respeita às suas próprias construções identitárias, é exatamente isso que ele usa para desqualificar judeus, de modo geral. Portanto, há neste tipo de argumentação uma meia-verdade o que, convenhamos, sempre é pior que uma mentira. Dentro dessa visão, é interessante constatarmos como somos permissivos com idéias totalmente que seriam repudiadas caso quem assim pensasse tivesse uma parcela mínima de poder. Em inexistindo empoderamento a essa pessoa, tudo cai na vala comum da ignorância e no descrédito genérico que impomos àqueles que, em nossa avaliação, nos são, por vários motivos, inferiores.

Ontem à noite, por exemplo, os alunos da Educação de Jovens e Adultos da EMEF Chico Mendes, onde trabalho, foram assistir, com seus professores uma bela peça de teatro na Casa de Cultura Mário Quintana. Duas colegas levaram digitais para registrar o encontro dos alunos com o Teatro. Uma delas convidou-me e a Ricardo para que fizéssemos uma foto. Ele se desviou e disse, voz bem alta: “eu não vou tirar foto com ele (eu, no caso), porque ele é judeu!”, e saiu para o lado, com um sorriso meio contrafeito e com um ar de deboche. O imaginário, portanto, é referencial nessa situação. Em algum momento de sua história pessoal, seja por experiência própria, seja por circunstâncias, seja por influência de terceiros, Ricardo associou “judeus” como uma categoria de pessoas não muito confiáveis, urdindo daí sua repulsão e/ou seu inconsciente temor aos mesmos, havendo tal sentido atribuído uma visão perigosa ou perturbadora em relação a esse Outro tão distinto dele próprio. E tão desconhecido, na mesma proporcionalidade.

Sem dúvida as relações subjetivas/objetivas que construíram essa visão anti-judaica foram muito competentes, se considerarmos que somos muito mais motivados em nossos desejos, culpas e exaltações pelos sentimentos e pelas significações do que pela razão. Esta nada mais é do que a ponta do iceberg, mas nosso consciente e nossas emoções é que regem nossas estruturas identitárias.

Ao imprinting cultural se agregarão as convivências com os outros, com nossos parentes, com nossa comunidade, com os nossos pares; tais relações, sempre assimétricas e não-lineares compõe um painel multifacetário e, sem dúvida, responde pela estruturação de nossas visões de mundo, além de fornecer um manancial dentro do qual delinearemos nossas linhas argumentativas e ideológicas, mesmo que não nos demos conta disso. Assim, o imaginário é bem mais do que pensemos, especialmente em termos de formação identitária.

Ah, sim, Ricardo não assiste minhas aulas, pelos motivos já declarados, ou talvez por outros que eu desconheça mas, sem dúvida, o fato de eu ser judeu não ajuda na melhoria de sua freqüência. É, no mínimo, perturbador, se pensarmos que Ricardo trabalha em um local em que tem contatos com pessoas claramente pertencentes á classe dominante. Para eles, assim como para alguns aqui na escola, Ricardo é invisível. Tudo isso que estou escrevendo não tem para muitos, um argumento tão forte para que eu escreva sobre o fato.

No entanto, como judeu e como educador, o repertório comportamental e ideológico de Ricardo é digno de nota, não por uma ameaça real, mas pela continuidade de um tipo de pensamento que infelicita vários povos no mundo e que está na origem das guerras étnicas e de extermínio de crenças, de povos e, especialmente, de seres humanos. Aqui, o não-importar-se é justamente sacralizar o sentido do não-sentido, a vitória da violência sobre a paz, a categorização do humano como um produto a ser descartado na primeira esquina, a partir de uma mirada estreita do que seja a convivência, a tolerância e a solidariedade.

Enquanto os dominantes pensam, os dominados agem, mas sempre de acordo com a submissão à qual são clientes de modo tão banalizado que não importa mais pensar o quê e o porquê do que se pensa e do que se faz. De qualquer modo, nesse sentido, o fazer é bem menos do que uma autonomia vigilante recomendaria. HILTON BESNOS

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