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22
Ago15

Os desejos são a fantasia

por Hilton Besnos

 

A infinidade dos desejos supera em muito as necessidades. Os desejos são as fantasias, enquanto as necessidades são o real. O melhor é que um não engolfe o outro, de modo a continuarmos sonhando com nossa pulsão de libido nos tensionando ao mesmo tempo em que as realidades são continuamente formatadas pelo nosso superego. Matar o desejo é ceder a Tânatos, é nos paralisarmos/ engessarmos dentro do palco social em que estamos mergulhados.

Nosso desejo de sermos deuses não deve impor que sejamos Ícaros, assim como o real não nos deve constranger a sermos Sísifos. Dentro dessa mediação, na qual nossos sentimentos e experiências compõe a maior parte do que somos, acabamos assumindo nossas facetas, nosso destino, nossa predestinação. A questão é que esse nosso destino e essa predestinação, que para a maioria é simplesmente um dado empírico, tem profundas implicações sociais. Somos todos um produto social, o que não mata nossa vontade nem deixa de nos impulsionar à frente em nossos objetivos, sejam elevados ou torpes. Libido. De um lado, se não podemos prever os acontecimentos em nossa vida, por outro temos opções, temos escolhas. Mas essas são decorrentes de imprintings culturais, portanto são socialmente mediadas.

Fossemos usar parâmetros cartesianos, diríamos que em contraponto ao desejo se encontra o racionalismo, derivado do iluminismo europeu do século XVIII e XVIII. Contudo, tal não é tão simples de reduções precárias, conforme vem nos demonstrando questões de descontinuidade e de fortes interações que hoje temos bem mais condições de entender, porque as vivemos. Conexões ocultas, de Fritjof Capra, nos alerta sobre tais interações. Ocorre que essencialmente não há nada no desejo ou na racionalidade que seja ruim ou destruidor, assim como não existe demérito na ambição ou em qualquer dos pecados judaico-cristãos tão severamente aprendidos e, ao mesmo tempo, tão relegados no cotidiano da vida, desde que haja temperança; mesmo a violência é uma decorrência da condição humana e como tal deve ser vista, e não inutilmente exorcizada. O humano não pode conviver sem as grandiosidades e as misérias de sua própria condição.

Somos portanto instáveis, e mais ainda a partir do momento em que não temos condições de entendermos nossos desejos e nossas necessidades. Com o decorrer do tempo passamos a ser pessoas mergulhadas no mundo do espetáculo e do consumo; assim, somos sexuais, ao invés de sensuais;  agressivas ao invés de solidárias, recebendo verdades pasteurizadas e edulcoradas ao invés de sermos reflexivos e críticos.

A vida passa a ser um show, e temos de ter nosso minuto de fama, conforme disse Warholl. De certo modo, nossa humanidade e nossos sentimentos se tornaram um casulo. Talvez por isso sejamos tão sensoriais e tenhamos desenvolvido de maneira notável nosso pensamento mágico, como dizia Freire. Somos seres continuamente em construção, mas é exatamente isso que o mundo do consumo não quer. Melhor, para ele, é que nos tornemos cada vez mais acríticos e cartesianos. Conhecer para dominar é uma estratégia bastante utilizada. Somos mapeados, e se há alguma porta de saída não é a do aeroporto.

Embora tenhamos esquecido, talvez tenhamos de acessar nossa humanidade, que se encontra em stand by, e nossa capacidade de pensar, de (re) fletirmos sobre nós mesmos e sobre os outros. Talvez devamos nos dedicar a matutar, a recebermos com senso crítico o que nos chega, buscando misturarmos racionalidade e sentimentos em humanidades. Afinal, se não somos Medéia, que não sejamos apenas um dado tecnológico, um consumidor customizado.

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22
Ago15

Violência na telinha

por Hilton Besnos

 

Yves de la Taille

“Televisão, violência e infância”, copyright Folha de S. Paulo, 18/03/01

“Vamos diretamente ao ponto: sim, ou não, a presença de inúmeros programas de televisão contendo inúmeras cenas de violência levam as crianças a apresentarem, elas mesmas, comportamentos violentos? Penso que devemos, antes de mais nada, admitir que pouco sabemos sobre a influência da televisão sobre o comportamento das pessoas.

Não somente é extremamente difícil aquilatar tal influência (há tantas outras a que uma pessoa está diariamente submetida) como o fenômeno televisão é ainda recente e muito dinâmico (a TV dos anos 60 é bem diferente da de hoje, por exemplo). Logo, devemos abandonar qualquer veleidade de afirmar que a referida influência existe ou não existe, ou é de um certo tipo ou de outro. Mas tal prudência não implica adiar o debate, pois alguns conhecimentos psicológicos sobre o desenvolvimento da criança nos permitem fazer algumas hipóteses sérias.

Um primeiro dado diz respeito à presença ou ausência de tendência agressiva natural nos seres humanos. Ora, hoje admite-se que tal tendência existe. Logo, devemos descartar a hipótese de que a criança nasceria ‘boa’, ‘pacífica’, e que a probabilidade de ela entrar em conflito com outras pessoas e a vontade de agredi-las seriam só decorrências das influências de uma sociedade adulta violenta, má, que perverteria a natureza inocente das crianças.

Uma das tarefas da educação consiste, pelo contrário, em levar a criança a colocar limites aos comportamentos que traduzem sua agressividade e a canalizar essa para ações pessoal e socialmente produtivas. Portanto, parece-me errado afirmar que exemplos de violência, sejam eles dados por adultos de carne e osso ou apresentados em filmes e programas de televisão, tornam violentos seres que, sem esses modelos, seriam absolutamente pacíficos. Todavia, parece-me igualmente errado daí chegar à conclusão de que tais exemplos nada mais fazem do que referendar uma natureza bélica inevitável.

Um segundo dado deve ser lembrado: a infância é a época da construção da identidade, ou seja, da árdua tarefa de ir decidindo qual a melhor resposta para a pergunta ‘quem sou eu?’. Tal resposta é sempre valorativa no sentido de que as imagens que cada um tem de si remetem a categorias como bom, mal, desejável, indesejável, certo, errado etc. Em uma frase: ser é ser valor. Pois bem, nessa construção da identidade, os valores que a sociedade adulta preza e promove têm grande influência. E aqui reencontramos o tema da violência. A pergunta a ser feita não é se a violência está presente ou não nas manifestações culturais (na verdade, sempre esteve presente), mas sim como é interpretada do ponto de vista dos valores.

É justamente nesse ponto que pode-se falar em influência da TV nos comportamentos infantis. Se os programas, além de exacerbar sua presença, associam a violência a determinados valores positivos, eles aumentam a probabilidade de as crianças construírem uma identidade na qual os comportamentos violentos ocupam lugar central.

Ora, hoje, esse é o caso de muitos programas: o recurso à violência é apresentado sempre como legítimo, superior ao uso da inteligência, como único recurso para ‘resolver conflitos’, como fonte de poder e glória. Em resumo, assiste-se às vezes a uma sacralização da violência, que pode levar jovens a construírem sua identidade e seu orgulho em torno dela. Em compensação, pode haver programas que também encenam a violência, mas com significado moral bem diferente: em vez de ser sacralizada, ela é situada num conjunto de valores que a transcendem.

Para ilustrar o raciocínio, tomemos o personagem Zorro, cujos seriados eram muito populares décadas atrás. Zorro emprega a violência? Sim. Ele luta? Sim. Ele é forte? Sim.

Mas vamos pensar um pouco mais sobre esse personagem. Qual é o motivo de sua violência? Lutar contra a injustiça. Quando ele a emprega? Quando os recursos da inteligência não são mais possíveis. Que tipo de violência emprega? Aquela que visa neutralizar o adversário. Que recompensa há para a violência? Nenhuma do ponto de vista financeiro e também nenhuma (pelo menos direta) do ponto de vista da reputação ou da glória, já que o herói esconde-se sob o anonimato de um pacato fazendeiro.

Pois bem, se analisarmos muitos dos programas que hoje encenam a luta, a violência, teremos um quadro valorativo diferente. O motivo da violência é, frequentemente, aniquilar o outro, não porque é injusto, mas simplesmente porque fere interesses pessoais, porque ele representa o ‘não-eu’. A violência, traduzida pela força bruta de músculos e armas poderosíssimas, é apresentada como único e legítimo recurso. A violência não visa apenas neutralizar o adversário, mas sim destruí-lo por completo, matá-lo. E a recompensa é o poder e a glória.

É plausível pensar que o problema não é tanto a presença ou ausência de violência nos programas que é importante levar em conta, mas sim o tratamento ético dado a ela. A televisão não gera a violência, mas pode participar de um processo que a autoriza, a legitima, a glorifica.

Se hoje a violência tem aumentado na sociedade ocidental como um todo, não é apenas em razão das condições sociais (desemprego, exclusão social), mas também pelo fato de muitas pessoas a ela associarem sua auto-estima, sua identidade. Trata-se de um fenômeno cultural amplo, do qual a TV é apenas uma parte. Mas o fato de ela ser apenas parte do processo não a redime em absoluto. A dignidade impõe que ela reflita sobre seu papel social. (Yves de La Taille é professor livre-docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e autor, entre outros, de ‘Piaget, Vygotsky, Wallon: Teorias Psicogenéticas em Discussão’)”

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22
Ago15

AAMF - Giorgio Bassani

por Hilton Besnos

Antonio Augusto Mariante Furtado (AAMF) Giorgio Bassani

Publicado em 06 de maio de 2013

Short photo essay on Giorgio Bassani and his masterpiece: Il giardino de Finzi-Contini

Music: I'm Getting Sentimental Over You, por Tommy Dorsey and his Orchestra

 

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22
Ago15

 

 

O que é o voracilo parasitário? Este termo foi criado por Rualdo Menegat (citado no post MENEGAT, LIAU E AS CIDADES) e significa a demanda das cidades em relação aos seus dejetos, aos seus materiais inaproveitados, às suas sobras. Como dar conta desse voracilo que despeja toneladas de objetos os mais variados sob o nome genérico de lixo? Caliça, vidros, madeiras, materiais orgânicos, dejetos hospitalares, sobras, rejeitos, pilhas, pedaços de tudo quanto se imagine, enfim, uma atividade que poderia ser comparada metaforicamente ao produto de um metabolismo gigantesco e insano?

Em São Paulo há projetos bastante eficazes de aproveitamento do lixo. Para a Associação Brasileira de Empresas de Tratamento de Resíduos (Abetre), São Paulo “é líder no País em número de unidades privadas de tratamento de resíduos industriais. Com um Produto Interno Bruto de R$ 436 bilhões o Estado conta com 17 aterros, quatro incineradores e cinco plantas para uso do resíduo como combustível para fornos de cimento. São Paulo conta com as mais avançadas tecnologias para o tratamento e disposição de resíduos industriais do Brasil” (http://www.odebate.com.br/)

velocilo é associado à velocidade alienadora que impulsiona industrialmente os nossos cotidianos. Em meio à tal compressão do tempo e dos espaços, temos também uma incompreensão de nossos próprios tempos, de nossas próprias relações com os demais. Circulando em grupos de diversas naturezas (profissionais, pessoais, de estudos, de pesquisas, comunitários, políticos, religiosos, de consumidores, esportivos, etc.), muitas vezes nos alienamos de nosso semelhante e, a contragosto ou não, acabamos sendo cooptados pelo voracilo e pelo velocilo que, em verdade se complementam como uma estrutura indefinida, controladora, não-linear, indiferente e em boa parte, formadora de desconhecidos que vivem em comum.

Para o Professor Rualdo Menegat uma das maneiras mais eficazes de entendermos a cidade e diminuirmos os efeitos nefastos do voracilo parasitário e do velocilo repousa em um quadrilátero de ações que se integram de modo orgânico: educação, gestão ambiental, conhecimento e participação cidadã. O que importa é que esses cenários que parecem tão distintos possam interagir de modo a privilegiar não apenas uma melhor qualidade de vida para os cidadãos, mas um impacto menor ao meio ambiente, em razão das atividades do homem.

Aqui o papel da escola é fundamental, não só informando mas especialmente formando uma consciência na qual o sentimento de descartabilidade seja substituído por um sentido comunitário muito mais forte. Ao pensarmos no global, muitas vezes corremos o risco de esquecermos o local, o que está próximo a nós, onde vivemos e circulamos, onde estabelecemos nossas relações com o mundo. Essa matriz de pensamento nos leva a adquirirmos um sentimento que dificulta em muito qualquer tipo de ação mais efetiva: a indiferença. Nos tornamos insensíveis em relação ao meio-ambiente porque nos resta a sensação de que a mãe Terra é muito vasta e que os recursos naturais nunca nos faltarão, mesmo que nos informem o contrário, que os cientistas demonstrem que essa fartura material é uma falácia, e tenhamos aprendido desde cedo que, dos mananciais de água existentes, menos de um terço são de água potável: mesmo assim continuamos desperdiçando água, energia, petróleo, ao mesmo tempo que nos quedamos indiferentes quanto às devastações florestais, o aquecimento global e com o lixo que não separamos. Continuamos entulhando os cursos d’água com todo o tipo de dejetos que possamos produzir.

A escola não apenas deve alertar, mas criar ações contínuas para que adquiramos uma consciência de que o voracilo e o velocilo não discriminam gênero, etnia, idade: simplesmente as consomem. A consciência do homem, contudo, deve ser, ao mesmo tempo local e planetária. Se a informação muitas vezes não basta, o caminho muitas vezes árduo, longo e não raro imprevisível da formação deve ser especialmente focado. Infelizmente, talvez não haja tempo suficiente para revertermos a situação. Falta-nos, como sempre, humildade.

Contudo, sejamos socialmente críticos para entendermos que os países que mais poluem o mundo, portanto as cidades, os campos, os mananciais de água, são justamente os mais poderosos: Estados Unidos e China. Não basta, portanto, sermos ingênuos. Precisamos de ações políticas que toquem no ponto mais sagrado do capitalismo: o bolso. Aí, e somente aí teremos a possibilidade de sermos ouvidos (e levados a sério).

Enquanto os Estados Unidos, além de não assinarem o tratado de Kioto, continuarem predando o mundo e a China continuar alimentando um modelo de produção e de trabalho semi-escravista, adotando padrões de violência ambiental extremamente nítidos, teremos graves dificuldades. Nenhum dos dois gigantes pretende melhorar qualquer coisa a respeito de seus projetos econômicos, sociais e ambientais. Nós todos pagamos a conta. Há voracilos e velocilos que possuem bandeiras internacionais. E que um dia devorarão não somente a si próprios, mas a todos nós. HILTON BESNOS

 

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21
Ago15

Minha alma é um tinteiro seco

por Hilton Besnos

Lyslei de Souza Nascimento1

Para Wander Melo Miranda

Todos os anos, os devotos italianos de San Gennaro vão a Nápoles e participam do rito que envolve a fantástica liquefação do sangue do mártir exposto em duas âmbulas. A fé, simulação cega de certezas de coisas que se esperam, a convicção de fatos que se não vêem, é o poderoso vetor que faz o sangue coagulado dissolver-se.

O santo, decapitado na perseguição perpetrada por Diocleciano, teve suas relíquias conduzidas à Catedral de Nápoles pelo Rei Fernando da Espanha, em 1495. A cerimônia do milagre de San Gennaro é aberta a um sem número de peregrinos que podem ver exposto o sangue e, também, segundo a tradição, a liquefação e a ebulição do precioso líquido. Se o sangue não se liqüefaz, é mau presságio.

As ampolas ou âmbulas são relicários religiosos, objetos de encerramento que gozam do júbilo do oculto, do misterioso e do sagrado. Também possuem, esses continentes, a propriedade de manter segredos que esperam para serem revelados. Segundo Danielle Régnier-Bohler2, os relicários são guardiões de uma quintessência e de uma memória narrativa, além de se constituírem como metáforas de uma perenidade desejada pelo fiel.

As âmbulas podem ser vistas como as copas da carta de tarô, o crisol dos alquimistas ou o tinteiro do narrador-escritor em O castelo dos destinos cruzados, de Italo Calvino.3

O relicário de Calvino escapa, no entanto, ao sagrado e ao ritual que as âmbulas de San Gennaro e as relíquias ostentam. O Cálice Bento, o Santo Graal e outros signos que circulam na tradição religiosa e literária vêm envoltos em construções imaginárias do sagrado, daquilo que foi separado para a veneração. O papel do fiel é, portanto, crer, sem sombra de dúvida, no Santo Graal que, às vezes, pode ser, não só o cálice que contém o sangue de Cristo, como também o livro que contém a chave para a vida eterna. O Santo Graal, como descreve a lenda medieval, é um vaso de esmeraldas usado por Jesus na última ceia e com o qual José de Arimatéia teria recolhido o sangue de Cristo quando este teve o seu coração transpassado pela lança de um centurião. A lenda aparece a partir do século XII, nos romances de cavalaria como Perceval ou Le Conte du Graal, 1182, de Chretién de Troyes.

Ambas as representações dessa tradição, o cálice e o livro, veiculam a idéia de uma vida eterna e sem males e partem da premissa metafísica da fé.

Em Calvino, no entanto, a alma é um tinteiro seco. O cálice e o tinteiro se identificam à medida que alojam a tinta/sangue da escrita. O relicário de Calvino está seco. No fundo dessa copa – depositária infinita de referências literárias e pictóricas – descansa a tinta/sangue. Enquanto o texto que se apoia na fé, ilusão de quem crê, busca incessantemente o milagre – da liquefação do sangue de San Gennaro para a boa sorte ou o Santo Graal, para a vida eterna -, o texto de Calvino apoia-se na leveza poética que a ciência pode alcançar na literatura.

A leveza atua sobre a tinta seca dos múltiplos textos cruzados que compõem o resíduo no fundo do tinteiro e impelem o narrador-escritor a liqüefazer os textos que, às vezes, teimam em se apresentar sob o peso da tradição. O que faz a tinta de Calvino escorrer e criar novos e inusitados rastros sobre o papel é a busca alquímica de quem intenta, pela literatura, o conhecimento das coisas, retirando, no entanto, todo o peso da linguagem, fazendo dela e com ela a leveza do viver. A pena, o cálamo, a esferográfica de Calvino parecem indicar sempre uma encruzilhada de múltiplos caminhos que seguem o fio negro de tinta sobre o papel: o caminho das paixões – uma via de fato, agressiva, de cortes nítidos – e o caminho do não-saber, que requer reflexão e um lento aprendizado.

No tinteiro seco de Calvino, subjaz a multiplicidade das referências e inferências que a memória do leitor pode fazer. São imagens de borrões e de rasuras no pergaminho do escritor. O cálice/tinteiro religioso transborda, outros cálices estão vertiginosamente cheios e ainda se continua a beber no copo alheio, mas o tinteiro de Calvino está seco. Sua escrita tem, nessa representação, um subsolo que pertence a certas categorias da renda4. Calvino acaba por filigranar e socavar, através de evocações mnemônicas, os textos que estão precariamente sedimentados na tinta com que escreve. Em estado de dicionário estão todas as leituras e imagens – memórias infinitas, impossíveis de seguir, de rastros e rasuras – que constituem esse palimpsesto.

As imagens de transbordamento e de sede insaciável contrapõem-se à imagem austera e elegante do tinteiro seco. A tinta seca, longe de ser um empecilho à escrita, apresenta-se, em Calvino, como uma soma das multiplicidades textuais que compõem a escrita. Os livros se respondem, combatem-se, completam-se reciprocamente e é no contexto cultural em que esses textos são produzidos que cada operação do escritor ganha sentido. Esse trabalho fabulatório está para o compor e o recompor, o reduzir pouco a pouco o tom da matéria verbal grandiloqüente até chegar no nível de um balbucio de sonâmbulo.5

A primeira imagem evocada, cálice/relicário, é da sacralidade da escritura com sua solenidade que se quer transcendente para o homem. A segunda, tinteiro/tinta, é sobretudo uma desconfiança no fazer dos homens e na auto-construção do seu destino. O texto, por essa via, perde a aura e se apresenta como artefato e matéria literária.

A tinta seca no tinteiro elegante está para o exercício da memória do escritor e do leitor; parceria indispensável nesse empreendimento. Tudo o que se aprendeu de cor, o que se recitou mentalmente, o que se fundou num repertório de textos é continuamente revolvido pela pena do escritor. O texto disperso na memória volta a se apresentar fluido na reescrita, sem vibração nostálgica, mas sempre como um texto que é lido/escrito pela primeira vez e que pode ser considerado como um arquivo dos materiais acumulados pouco a pouco, ao longo de estratificações sucessivas de interpretações iconológicas, de humores temperamentais, de intenções ideológicas, de escolhas estilísticas.6

A espessura que a tinta seca pode evocar liga-se ao peso do existir dentro da tradição. O resíduo da tinta apresenta-se como um repertório iconográfico de textos que, em Calvino, aparecem sobrepostos, em palimpsestos que subjazem na memória. A suspensão da capacidade da tinta de escrever, sua concretude, pode, ao apresentar-se, paradoxalmente, como uma espécie de resíduo alquímico em que a pena do escritor explora confins negros do pensável, materiais narráveis, possibilidades discursivas.

O milagre da pena do escritor consiste, assim, em liqüefazer a tinta seca e reescrever com leveza os textos sedimentados na memória ou extrair dos resíduos das narrativas tinta para novas histórias. Do caos primitivo da tinta seca, escoam possibilidades de matizes e nuanças de outros textos que anelam pela travessia do leitor.

Copas, vasos, relicários, âmbulas, crisóis e tinteiros são todos depositários da tinta/sangue com que se escreve a ficção. A intervenção da pena do escritor, de sua esferográfica, no entanto, dissolve o peso da escrita que se quer, como afirma Calvino, leve como as densas colchas de asas de borboletas; as pegadas de cascos alados que são mais leves que as patas dos insetos; um polvilhar dourado sobre as folhas, como deixam cair certas libélulas. Esses rastros servem, porém, como guia no emaranhado de possibilidades narrativas.7

A tinta residual e condensada no fundo do tinteiro lembra a nigredo, da alquimia. Mircea Eliade em Ferreiros e Alquimistas8, associa à cor negra a redução de substâncias à matéria prima, à massa confusa. A tinta seca de Calvino, vista como essa massa residual informe, corresponderia ao Caos, pensado na Alquimia. Uma das máximas dos alquimistas aconselha: “Não efetue qualquer operação antes que tudo tenha sido reduzido à Água”. Semelhantemente, em Calvino, o texto só pode ser gerado se a condensação da tinta – resíduos de tantos textos – for diluída para se obter a leukosis, a albedo: ressurreição da nigredo – da tinta negra – em uma outra narrativa.

Tal qual o alquimista, o escritor deve obter a dissolução dessas substâncias textuais para que haja possibilidade de engendrar novas e inesperadas tramas. Para o escritor-alquimista, o conhecimento do mundo é a dissolução de sua compacidade9, a prima matéria, a massa confusa, o abyssus. De uma certa forma, uma volta a um estado primordial em que a divina tintura pode fluir, sem perder de vista que

dessa esfera árida partem todos os discursos e poemas e todas as viagens através de florestas batalhas tesouros banquetes alcovas nos trazem de volta para cá: o centro de um horizonte vazio.10

No Castelo dos destinos cruzados, o centro do horizonte vazio parece ser, ironicamente, o lugar de onde e para onde convergem todas as narrativas. A redução do resíduo à tinta liqüefeita é que fundamenta essas novas narrativas. O fenômeno da regressão – a volta da matéria em sua forma líquida, portanto, narrável, sujeita à escrita – pode ser relacionado, também, ao nascimento e à morte. Morte iniciática tal como se depreende da nigredo, da putrefactio, da dissolutio. Para a alquimia, toda morte é, antes de tudo, uma reintegração na Noite cósmica, no Caos pré-cosmológico, enfim, um retorno à fase seminal da existência. Logo, a criação (uma nova escritura), como aparecimento de Formas, é efeito de uma morte iniciatória e a ressurreição corresponderia ao redimensionamento da materia prima – onde se contempla o Todo e se decidem as Escolhas – em uma nova materia. Para Calvino, toda narrativa é percorrida pela sensação da morte em que parecem debater-se, ansiosamente, personagens reais e fictícios que se agarram nos liames da vida.11

A carta da morte no Tarô, assim, pode ser lida em sua ambigüidade como portadora de raízes adubadas de cadáveres mal curtidos e de ossos depenados que, entre sepultamentos e exumações, possibilitam a reescrita. A transformação alquímica, como recomenda o Liber Platonis Quartorum, deve ocorrer num occipício como vaso, uma vez que o crânio é o receptáculo do pensamento e do intelecto (os capitis… vas mansionis cogitationis et intellectus; citado por Jung em Psychologie und Alchemie, p. 363). O alquimista em seu laboratório diante do crisol se assemelha ao escritor em seu escritório diante do tinteiro e ao São Jerônimo dos quadros citados por Calvino. O simbolismo mineralógico, os rituais metalúrgicos, as magias do fogo e as crenças na transmutação dos metais em ouro aproximam-se do trabalho do escritor com as palavras.

A descida aos Infernos – a morte iniciatória – e a experiência que transforma a tinta seca em tinta líquida se traduzem através do simbolismo saturnino, da melancolia, da contemplação de crânios.

A figura de Cronos-Saturno simboliza o Grande Destruidor que é o Tempo, e portanto não só a morte (= putrefactio) como também novo nascimento. Saturno, símbolo do Tempo, é muitas vezes representado com uma balança na mão. (…) Não se deveria esquecer nesse “domínio da Balança” (que os torna oniscientes e clarividentes), nessa familiaridade com a obra do Tempo (a putrefactio, a Morte que destrói omne genus et formam), nessa “sabedoria reservada apenas àqueles que anteciparam durante a vida a experiência da morte, a explicação da célebre “melancolia saturnina” dos magos e alquimistas?12

Calvino, na proposta das lições americanas sobre a exatidão, evoca Maat, a deusa da balança. A precisão é explicada pelo escritor como um projeto de obra bem definido e calculado, como a evocação de imagens visuais nítidas, incisivas, memoráveis e como uma linguagem que seja a mais precisa possível como um léxico que traduziria as nuanças do pensamento e da imaginação. Essa preocupação com aponta para o trabalho diligente do escritor-alquimista e sua tendência à introspecção própria aos melancólicos. Segundo Calvino:

Os antigos nos ensinam que o temperamento saturnino é próprio dos artistas, dos poetas, dos pensadores, e essa caracterização me parece correta. É certo que a literatura jamais teria existido se uma boa parte dos seres humanos não fosse inclinada a uma forte introversão, a um descontentamento com o mundo tal como ele é, a um esquecer-se das horas e dos dias fixando o olhar sobre a imobilidade das palavras mudas. Meu caráter apresenta sem dúvida os traços tradicionais da categoria a que pertenço: sempre permaneci um saturnino, por mais diversas que fossem as máscaras que procurasse usar. Minha veneração por Mercúrio talvez não passe de uma aspiração, um querer ser: sou um saturnino que sonha ser mercurial, e tudo o que escrevo se ressente dessas duas influências.13

O escritor-alquimista efetua, com o crisol/tinteiro, o engendramento de uma narrativa que traz inscrito o traço daquele que a concebeu e de quantos textos o escritor/leitor percorreu em sua vida. Tanto mais, diz Calvino, que Balança é o seu signo zodiacal. Contrapondo Mercúrio (as trocas, o comércio, a destreza) e Saturno (a melancolia, a solidão, a contemplação), Calvino opera os dois pratos da Libra e tal qual o trabalho quase obsessivo e maníaco do alquimista-escritor, a narrativa ressurge como mosaicos construídos pelo desfiar/fiar de tradições e textos que constituem o tecido narrativo. Assim,

todas aquelas copas não passam de tinteiros secos à espera de que da negrura da tinta venham à tona os demônios as potências do ínfero os papões os hinos à morte as flores do mal os corações na treva, ou bem que paire aí o anjo melancólico que destila os humores da alma e extravasa extratos de graça e epifanias.14

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1 UFMG.

2 RÉGNIER-BOHLER, Danielle. Ficções. In: ARIÈS, Philippe e DUBY, Georges. História da vida privada: da Europa feudal à Renascença, p. 334 – 335. (Histoire de la vie privée, vol. 2: De l’Europe féodale à Renaissance).

3 CALVINO, Italo. O castelo dos destinos cruzados. Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. (Il castello dei destini incrociati).

4 CALVINO, 1993, p. 131.

5 CALVINO, 1993, p. 155.

6 CALVINO, 1993, p. 156.

7 CALVINO, Italo. Op. Cit., p. 48.

8 ELIADE, Mircea. Ferreiros e alquimistas. Rio de Janeiro: Zahar, 1979, p. 118 – 130.

9 CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. Trad. Ivo Barroso, 1991, p.21. (Lezioni americane: Sei proposte per il prossimo millennio).

10 CALVINO, 1993, p.58.

11 CALVINO, 1991, p. 46.

12 ELIADE, 1979, p. 124.

13 CALVINO, 1991, p. 64-65.

14 CALVINO, 1993, p. 128.

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19
Ago15

A arte de reduzir as cabeças

por Hilton Besnos

 

LMD, outubro 2003

CULTURA

A arte de reduzir as mentes

A força da ideologia neoliberal decorre do fato de não começar visando ao homem. Ela cria um novo estatuto do objeto, definido como simples mercadoria, esperando que os homens se transformem ao se adaptarem à mercadoria, apregoada como a única coisa real

Dany-Robert Dufour

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O capitalismo, que produz e devora muito, é “antropofágico”: também “come” o homem. Mas o que consome exatamente? Os corpos? Estes são usados há muito tempo e a antiga noção de “corpos produtivos” é uma prova disso 1. A grande novidade é hoje a redução das mentes. Como se o pleno desenvolvimento da razão instrumental (a técnica), inerente ao capitalismo, resultasse num déficit da razão pura (a faculdade de julgar a priori o que é verdadeiro ou falso, e até o que é o bem ou o mal). É precisamente este traço que me parece caracterizar como propriedade específica a virada chamada de “pós-moderno”: o momento em que o capitalismo, depois de ter subjugado tudo, dedicou-se à “redução das cabeças”.(…) A hipótese é, em suma, simples mas radical: nós assistimos, no presente, à destruição do duplo sujeito que teve origem na modernidade, o sujeito crítico (kantiano) e o sujeito neurótico (freudiano) – a que se deve acrescentar o sujeito marxiano – e vemos instalar-se um novo sujeito, um sujeito “pós-moderno”, a ser definido.

O processo de quebra simultânea do sujeito moderno e de fabricação provável de um novo sujeito é extremamente rápido. O sujeito crítico kantiano, que surgiu perto dos anos 1800, e o sujeito neurótico de Freud, nascido próximo dos anos 1900 – os quais, por sua idade respeitável, pareciam afastados de qualquer execução sumária – estão em vias de desaparecer diante de nós com uma rapidez espantosa. Esses sujeitos filosóficos eram pensados como protegidos das vicissitudes da história, bem instalados em uma posição transcendental e constituindo incansáveis sujeitos de referência para pensar nosso ser-no-mundo e, na verdade, muitos pensadores continuam espontaneamente a refletir com essas formas, como se fossem eternas. Ora, esses sujeitos perdem, pouco a pouco, sua evidência. A potência da forma filosófica que os constituía parece evaporar-se na história. Tornam-se fluidos. É difícil acreditar que formas tão analisadas, tão elaboradas, tão experimentadas possam desaparecer em tão pouco tempo. Entretanto, nunca se deveria esquecer que civilizações milenares podem se extinguir em alguns lustros.

Para se ater a acontecimentos recentes, é necessário lembrar que se viram tribos indígenas da floresta amazônica, que tinham atravessado os séculos e os ambientes mais hostis protegidos por práticas simbólicas solidamente arraigadas, perecerem em algumas semanas, incapazes de resistir aos choques violentos de uma outra forma de troca – a troca comercia l2.

A dessimbolização do mundo

Essa morte programada do sujeito da modernidade não me parece estranha à mutação que se observa, há uns bons vinte anos, no capitalismo. O neoliberalismo – para chamar esse novo estado do capitalismo por seu nome – atualmente está ocupado em desfazer todas as formas de trocas que prevaleciam, substituindo-as por um referencial que avalize o absoluto ou metassocial das trocas. Para ser rápido e ir ao ponto e no essencial, poderia-se dizer que seria necessário o ouro como referência para garantir as trocas monetárias, assim como seria necessária uma garantia simbólica (a Razão, por exemplo) para permitir os discursos filosóficos. Ora, deixa-se, a partir de agora, de se referir a qualquer valor transcendental para se dedicar às trocas. As trocas não valem mais enquanto garantidas por uma potência superior (de ordem transcendental ou moral), mas, sim, pelo que colocam diretamente em relação enquanto mercadorias. Em uma palavra, a troca comercial, hoje, des-simboliza o mundo. (…)

Toda figura transcendente que venha a fundar o valor será, a partir de agora, recusada; só existem mercadorias que são trocadas por seu estrito valor de mercado. Hoje, pede-se aos homens que se livrem de todas as sobrecargas simbólicas que garantiam suas trocas. O valor simbólico é assim desmantelado em proveito do simples e neutro valor monetário da mercadoria, de modo que nenhuma outra coisa, nenhuma consideração (moral, tradicional, transcendente, transcendental…), possa constituir um obstáculo à sua livre circulação. Disso resulta uma des-simbolização do mundo. Os homens não devem mais se conciliar com os valores simbólicos transcendentes, eles devem, simplesmente, se submeter ao jogo da circulação infinita e ampliada da mercadoria.

Se o que afirma Marcel Gauchet for verdadeiro – “a esfera de aplicação do modelo [de mercado] está destinada a se estender muito além do domínio da troca comercia l3” -, então haverá um preço a pagar por essa extensão: a alteração da função simbólica.(…).

Adaptando o indivíduo à mercadoria

Essa mudança radical no jogo das trocas leva a uma verdadeira mutação antropológica. A partir do momento em que qualquer garantia simbólica das trocas entre os homens é liquidada, é a própria condição humana que muda. Nosso ser-no-mundo não pode mais ser o mesmo a partir do momento em que o que se empenha de uma vida humana deixa de depender da busca da conciliação com esses valores simbólicos transcendentais desempenhando o papel de fiadores, mas fica vinculado à capacidade de se adaptar aos fluxos sempre instáveis da circulação da mercadoria. Em uma palavra, não é mais o mesmo sujeito que se exige aqui e ali.

Começamos, dessa forma, a descobrir que o neoliberalismo – como todas as ideologias anteriores que irromperam ao longo do século XX (o comunismo, o nazismo…) – não quer outra coisa senão a fabricação de um homem novo. Mas a grande força dessa nova ideologia em relação às anteriores decorre do fato de não ter começado visando ao homem diretamente, por meio de programas de reeducação e de coerção. Ela se contentou com introduzir um novo estatuto do objeto, definido como simples mercadoria, esperando que o resto viesse na seqüência: que os homens se transformassem no momento de sua adaptação à mercadoria, promovida desde então como a única coisa real 4. O novo adestramento do indivíduo efetua-se, pois, em nome de um “real” que é melhor acatar com resignação do que se opor: ele deve parecer sempre agradável, querido, desejado como se se tratasse de entertainments (televisão, publicidade…). Ainda não se analisou bem a incrível violência que se dissimula atrás dessas novas fachadas soft.(…)

O sujeito “esquizóide” da pós-modernidade

Deve-se notar que, em “fábrica de um novo sujeito”, entendo “sujeito” no sentido filosófico do termo: não falo do indivíduo no sentido sociológico, empírico ou mundano do termo, falo da forma sujeito ideal em via de se construir. Primeiramente, faço referência à forma sujeito que se construiu por volta dos anos 1800 com o aparecimento do sujeito crítico kantiano. O empirismo de Hume e seu ceticismo contra a racionalidade da metafísica clássica abalaram Kant, como se sabe, a tal ponto, que este bruscamente “despertou de (seu famoso) sono dogmático” e se viu forçado a refundar uma nova metafísica, crítica, definida nos limites da simples razão, livre do dogmatismo da transcendência e, entretanto, nada cedendo ao ceticismo empirista. Assim nascia a filosofia kantiana: baseada nos progressos da física desde Galileu e Newton, ela se constituiu sobre uma síntese magistral da experiência e do entendimento. A virada kantiana terá sido necessária para estabelecer que o pensamento necessitava tanto da intuição quanto do conceito. Na realidade, para Kant, a intuição sem conceito é cega, mas o conceito sem intuição é vazio.

(…)

O que ainda poderá valer esse sujeito crítico a partir do momento em que se trata apenas de vender e de comprar mercadoria? Para Kant, nem tudo é vendável: “Tudo tem um preço, ou uma dignidade. Pode-se substituir o que tem um preço por seu equivalente; em contrapartida, o que não tem preço, portanto não tem equivalente, é o que possui uma dignidade 5”. Isto pode ser dito de modo mais claro: a dignidade não pode ser substituída, “não tem preço” e “não tem equivalente”, refere-se apenas à autonomia da vontade e se opõe a tudo o que tem um preço. É por isso que o sujeito crítico não convém à troca comercial, e é exatamente o contrário que se exige na venda, no marketing e na promoção (deliberadamente mentirosa) da mercadoria. (…)

Portanto, nesses tempos neoliberais, o sujeito kantiano vai mal. Mas isto não é tudo, o outro sujeito da modernidade, o sujeito freudiano, não está em melhor situação. A neurose, com suas fixações compulsivas e suas tendências à repetição, não é a melhor garantia para a flexibilidade necessária às múltiplas conexões nos fluxos comerciais. A figura do esquizofrênico atualizada por Deleuze na década de 1970, com as polaridades múltiplas e invertíveis de suas máquinas que manifestam desejo, é, sob esse aspecto, muito mais competitiva 6.

(…) Tudo acontece hoje como se o novo capitalismo tivesse entendido a lição deleuziana. De fato, é necessário que os fluxos circulem, e circularão ainda melhor se o velho sujeito freudiano, com suas neuroses e suas frustrações nas identificações que não param de se cristalizar em formas rígidas anti-produtivas, for substituído por um ser aberto a todas as conexões. Em suma, levanto a hipótese de que esse novo estado do capitalismo é o melhor produtor do sujeito “esquizoide”, o da pós-modernidade.

Uma aventura rumo à loucura

Na dessimbolização que vivemos atualmente, o que convém não é mais o sujeito crítico antecipando uma deliberação conduzida em nome do imperativo moral da liberdade, nem tampouco o sujeito neurótico tomado de uma culpabilidade compulsiva; o que se exige agora é um sujeito precário, acrítico e psicotizante, um sujeito aberto a todas as conexões comerciais e a todas as flutuações identitárias.

É evidente que, apesar disso, os indivíduos não se tornaram todos psicóticos.

(…) De modo geral, por toda parte onde há instituições ainda vivas, isto é, onde nem tudo esteja ainda completamente desregulamentado, ou seja, esvaziado de toda substância, existe resistência a essa forma dominante. Afirmar que uma nova forma sujeito está em vias de se impor na aventura humana não significa, pois, dizer que todos os indivíduos irão sucumbir facilmente a ela. Não digo, portanto, que todos os indivíduos irão enlouquecer, digo simplesmente que, afirmando essa forma sujeito ideal, fazem-se grandes esforços para que eles se tornem loucos. Em especial mergulhando-os num “mundo sem limite 7” que incentive a multiplicação de passagens à ação psicotizantes e sua instalação num estado borderline.

Como Foucault profetizara há vinte anos, o mundo tornou-se, pois, deleuziano. (…) Deleuze queria simplesmente ultrapassar o capitalismo desterritorializando mais depressa que este, mas tudo indica, hoje, que ele subestimou a fabulosa velocidade de absorção do capitalismo e sua fantástica capacidade de recuperação da crítica mais radical 8. O que coloca mais uma vez na ordem do dia o ditado segundo o qual os sonhos políticos do filósofo freqüentemente se realizam como pesadelos.

Construindo impérios de papel

A essa morte programada do sujeito crítico kantiano e do sujeito neurótico freudiano, convém acrescentar um terceiro atestado de óbito, o do sujeito marxiano. Realmente, na economia neoliberal, o trabalho não é mais a base da produção do valor. O capital não é mais essencialmente constituído pela mais-valia (Mehrwert, em Marx) originada da superprodução apropriada no processo de exploração do proletário. O capital aposta cada vez mais nas atividades de alto valor agregado (pesquisa, engenharia genética, Internet, informação, mídia…), em que a parte do trabalho assalariado pouco ou medianamente qualificado é, às vezes, extremamente pequena.

Mas, principalmente, o capital agora faz intervir fundo a gestão das finanças em movimentos especulativos de grande amplitude. A parte da economia “real”, por exemplo, diminui proporcionalmente à financeirização da economia que se desenvolveu de maneira considerável nos últimos 25 anos, a partir do desenvolvimento dos novos mecanismos financeiros e instrumentos de gestão do capitalismo (…). Aparece, desta maneira, como um epifenômeno conquistador vindo se enxertar sobre a economia real, uma economia virtual que consiste, essencialmente, em criar muito dinheiro com quase nada, vendendo muito caro o que ainda não existe, o que já não existe ou o que pura e simplesmente não existe, correndo o risco de criar impérios de papel prontos a desabar de modo brutal (cf. os escândalos Enron, WorldCom, Tyco…).

(…)

A reestruturação das mentes

Sob uma aparência bonachona e democrática, uma nova ideologia, provavelmente tão virulenta quanto as terríveis ideologias que surgiram no Ocidente no século XX, está se instalando. Na verdade, não é impossível que, após o inferno do nazismo e o terror do comunismo, uma nova catástrofe histórica se manifeste. É o caso de perguntar se não se saiu de umas para cair mais facilmente em outra. Porque o ultraliberalismo, como as duas ideologias acima citadas, quer igualmente fabricar um homem novo.

(…)

Entramos, pois, em um tempo novo: o do capitalismo total que não se interessa mais só pelos bens e por sua capitalização, que não se contenta mais com um controle social dos corpos, mas visa também, sob a aparência de liberdade, a uma profunda reestruturação das mentes. Tudo, de fato, deve agora entrar no mundo da mercadoria, todas as regiões e todas as atividades do mundo, inclusive os mecanismos de subjetivação. É por isso que, diante desse perigo absoluto, a hora é de resistência, de todas as formas de resistência que defendem a cultura – em sua diversidade – e a civilização – em suas conquistas.

(Trad.: Iraci D. Poleti)

n t

1 – A noção de “corpo produtivo”, enquanto corpo biológico integrado no processo de produção, já está presente em Marx, em Le Capital in OEuvres complètes, ed. Gallimard, Paris, 1965: cf. Livre premier, Le développement de la production capitaliste, IVe section: la production de la plus-value relative, XIII: Coopération.

2 – Ver, por exemplo, La guerre de pacification en Amazonie, 90’, documentário de Yves Billon, Les Films du village, 1973.

3 – Ler, de Marcel Gauchet, La démocratie contre elle-même, ed. Gallimard, Paris, 2002.

4 – Ler, de Charles Melman e Jean-Pierre Lebrun, L’homme sans gravité, Jouir à tout prix, ed. Denöel, Paris, 2002.

5 – Ler, de Emmanuel Kant, Fondements de la métaphysique des moeurs [1785], ed. Garnier-Flammarion, Paris, p.116.

6 – Ler, de Gilles Deleuze e Félix Guattari, L’anti-OEdipe, capitalisme et schizophrénie, ed. Minuit, Paris, 1972.

7 – Ler, de Jean-Pierre Lebrun, Un monde sans limite, ed. Erès, Ramonville, 1997.

8 – Cf., de Luc Boltanski e Ève Chiapello, Le Nouvel esprit du capitalisme, ed. Gallimard, Paris, 1999.

* Este texto é um trecho do livro L’art de réduire les têtes, a ser publicado no início de outubro pela editora Denoël, Paris.

 PUBLICADO NO LE MONDE DIPLOMATIQUE, outubro 2003

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19
Ago15

Hitler, por Joachim Fest

por Hilton Besnos

 

 FONTE CAMINHANDO POR FORA

http://caminhandoporfora.blogspot.com.br/2012/01/hitler-joachim-fest.html

 

Depois da Segunda Guerra Mundial, surgiram um sem número de xenófobos, anti-semitas, fundamentalistas, terroristas e radicais que se dizem inspirados em Hitler e Mein Kampf. Só que o máximo que eles conseguem é serem violentos, responsáveis pela morte de alguma centena de inocentes. A trajetória deles jamais consegue se parecer com aquele que os inspira. E quando lemos a biografia de Hitler escrita por Joachim Fest, passamos a entender o porquê: Hitler não era um homem violento. Ele sonhava em ser artista, gostava de flanar pela cidade, assistir Wagner, desenhar e fazer planos mirabolantes. Sua incapacidade de criar vínculos e se dedicar com seriedade o impediu de concluir seus estudos e arranjar um emprego. Às pessoas que o conheceram, causava a impressão de ser tímido e sem importância. Ele continua assim até os trinta anos de idade, quando seu talento oratório parece ter alguma utilidade política. Mas mesmo a decisão de entrar para a política não aconteceu de maneira apaixonada:
Mas todos os documentos históricos disponíveis testemunham uma extraordinária irresolução, manifesta até nos seus últimos anos, uma angústia profunda diante de um compromisso. Essa indecisão está na base de sua inclinação, assinalada por seus parentes, indecisão que o levava a não resolver uma questão senão depois de ter esgotado a mente com vacilações contraditórias e, afinal, deixando ao acaso o encargo de decidir, como que jogando cara ou coroa para obter a resposta. Essa tendência se manifestou até o ponto culminante de uma espécie de culto da fatalidade e da providência, que o ajudava a racionalizer sua repugnância por tomar uma resolução. Há sérias razões para pensar que todas as suas decisões pessoais e até mesmo algumas de suas decisões políticas foram apenas fugas destinadas a lhe permitir escapar de outra escolha que lhe parecesse mais perigosa. Seja como for, durante toda a vida, desde que abandonou os bancos escolares, em sua mudança para Viena e para Munique, no alistamento como voluntário para a guerra, e, enfim, na decisão de envolver-se na política, é fácil achar sempre um motivo de fuga. Isso explica muito de seu comportamento posterior e até mesmo as protelações de seu fim de vida, tudo sob o signo da perplexidade.
p. 126- 127
 
O outro lado que explica o fenômeno Hitler está no contexto histórico. Fest descreve detalhadamente o panorama histórico da época, o anti-semitismo reinante na Europa, o darwinismo social, o impacto do Tratado de Versalhes, a ascensão do facismo, idiossincrasias da política alemã. Esses dois enfoques evitam os dois extremos possíveis em torno da figura de Hitler: considerar Hitler uma espécie de demônio encarnado, um espírito do mal com claro senso de propósito sobre o dano que iria causar à humanidade; ou uma tentar diminuir a importância de sua figura, ver nele o símbolo de um movimento que triunfaria de qualquer forma, que causaria uma guerra qualquer que fosse a pessoa no comando. Fest mostra que Hitler possui um papel central no partido nazista, que existia antes dele e provavelmente encontraria espaço para crescer muito na Alemanha; ao mesmo tempo, mostra que não é possível ignorar a força de Hitler como orador que atraía multidões, a certeza e coerência com que conduziu a todos à guerra, a importância inédita que deu aos mecanismos de propaganda.
Tudo isso torna o livro – ou os dois volumes – uma biografia definitiva. Ele pode ser lido por todos os que se interessam pela figura de Hitler e a Segunda Guerra Mundial, que se encantarão com os detalhes que não existem nos outros livros; ele também pode ser lido por qualquer um que se interesse por história, que apreciam uma pesquisa consistente e não tem medo de enfrentar muitas páginas. Um livro para experts e para tornar-se expert.

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LMD, abril 2005

CULTURA

O homem neoliberal: da redução das cabeças à mudança dos corpos

A suspensão atual das proibições esconde um verdadeiro projeto pós-nazista sustentado pelo capitalismo. Ao mesmo tempo em que quebra as regulamentações simbólicas, possibilita que a técnica avance sozinha até quebrar a humanidade

Dany-Robert Dufour

Em L’art de réduire les têtes1, eu havia tentado evidenciar a profunda reconfiguração das mentes realizada pelo mercado. A demonstração era relativamente simples: o mercado recusa qualquer consideração (moral, tradicional, transcendente, transcendental, cultural, ambiental…) que possa impedir a livre circulação da mercadoria no mundo. É por isso que o novo capitalismo tenta desmantelar qualquer valor simbólico unicamente em benefício do valor monetário neutro da mercadoria. Dado que não há mais nada senão um conjunto de produtos que são trocados por seu estrito valor comercial, os homens devem livrar-se de todas as sobrecargas culturais e simbólicas que, até há pouco tempo, garantiam suas trocas.

Tem-se um bom exemplo dessa dessimbolização produzida pela expansão do reino da mercadoria quando se examina o papel-moeda emitido em euro. Observa-se que estas notas perderam as efígies das grandes figuras da cultura que, de Pasteur a Pascal e de Descartes a Delacroix, indexavam, ainda ontem, as trocas monetárias sobre os valores culturais patrimoniais dos Estados-nação.

Hoje, não há nada impresso nos euros além de pontes e portas ou janelas, exaltando uma fluidez desculturada. Pede-se aos homens que se curvem ao jogo da circulação infinita da mercadoria. Pode-se dizer, portanto, que a lei do mercado é destruir todas as formas de lei que representem uma pressão sobre a mercadoria.

Ao abolir qualquer valor comum, o mercado está em via de fabricar um outro “homem novo”, privado de sua faculdade de julgar (sem outro princípio que o do lucro máximo), levado a usufruir sem desejar (a única salvação possível encontra-se na mercadoria), formado em todas as flutuações identitárias (não há mais sujeito; existem apenas subjetivações temporárias, precárias) e aberto a quaisquer conexões comerciais. Estamos, aqui, diante de um aspecto muito particular da desregulamentação neoliberal que, infelizmente, ainda não é bem compreendida, mas que já produz efeitos consideráveis em todos os domínios, particularmente sobre o psiquismo humano. Um certo número de psiquiatras e de psicanalistas está fazendo o inventário dos novos sintomas decorrentes desta desregulamentação, como a depressão, as diversas dependências, as perturbações narcisistas, a extensão da perversão etc.

Desregulamentação simbólica

Esta desregulamentação de tipo novo provoca grandes confusões nos debates atuais. Ela é acompanhada de um cheiro libertário, baseado na proclamação da autonomia de cada um e numa extensão da tolerância em todos os campos sociais (dentre os quais o dos costumes), que tende a fazer acreditar que estamos em vias de viver um intenso período de libertação. Dado que o antigo patriarcado opressivo está em desvantagem, acredita-se que uma revolução sem precedentes estaria a caminho… esquecendo-se de que foi o próprio capitalismo que comandou esta “revolução” visando a facilitar a penetração da mercadoria nos domínios onde ela ainda não reinava – o dos costumes e o da cultura.

Karl Marx não se enganava quanto a essa face “revolucionária” do capitalismo: “A burguesia”, escrevia ele, “não pode existir sem provocar, constantemente, grandes mudanças nos instrumentos de produção, portanto nas relações de produção e, portanto, no conjunto das condições sociais. De modo contrário, a primeira condição de existência de todas as classes industriais anteriores era manter inalterado o antigo modo de produção. O que distingue a época burguesa de todas as precedentes é a incessante introdução de mudanças na produção, a desestabilização contínua de todas as instituições sociais, em resumo, a permanência da instabilidade e do movimento. Todas as relações sociais enferrujadas, com seu cortejo de idéias e de opiniões admitidas e veneradas, dissolvem-se; as que as substituem envelhecem antes mesmo de se esclerosarem. Tudo o que era sólido, bem definido, se desmancha no ar, tudo o que era sagrado se encontra profanado e, afinal, os homens são forçados a considerar com um olhar desiludido o lugar que ocupam na vida e suas relações recíprocas 2.” Esta capacidade de transformar as relações sociais atingiu o ponto máximo através desse novo estado do capitalismo que é chamado às vezes, e om razão, de “anarco-capitalismo”.

Essa transformação funcionou tão bem que houve quem tentasse reter apenas o lado “libertário”, “jovem” e “conectado” da nova forma, empolgando-se, sem grandes dificuldades, com a revolução dos costumes que ela introduzia. A confusão é tal que quem não faz outra coisa senão seguir essa desregulamentação cultural e simbólica acredita-se muitíssimo revolucionário – penso na parte da esquerda conectada que se entusiasma com todas as “causas tendência”. Ora, é exatamente o que quer dizer o anarco-capitalismo que gosta, se não da “revolução”, pelo menos de todas as formas de desregulamentação culturais e simbólicas. Todos os spots publicitários mostram isto.

Perigos potenciais

Parece que as populações pressentem os consideráveis perigos potenciais que a civilização corre diante de tal desregulamentação simbólica. Mas o Mercado pode recuperar tudo em seu proveito: muitos grupos já estão agindo, vangloriando-se e vendendo morais de péssima qualidade. Ora, seria um erro crucial deixar o debate sobre os valores para os conservadores, sejam eles antigos ou “neo”. De fato, se se abandonar esse terreno, ele será, como nos Estados Unidos, ocupado por George W. Bush, pelos tele-evangelistas e seus supostos puritanos, ou, como na Europa, pelos populismos fascistizantes. Portanto, é urgente construir uma nova reflexão sobre os valores, sobre o sentido da vida em sociedade e sobre o bem comum destinado às populações confusamente alarmadas pelos estragos morais devidos à extensão infinita do reino da mercadoria. É claro que, se esse terreno não for cercado, essas populações serão tentadas a pender para o lado dos que o ocupam de forma tão barulhenta quanto indevida.

Entretanto, restringir o debate a esses aspectos culturais seria cometer um grande engano. Porque parece que essa reconfiguração das mentes não é senão a primeira fase de um mecanismo mais amplo. Para dizê-lo em poucas palavras, a “redução de cabeças” e a dessimbolização são apenas o prelúdio de uma outra redefinição em profundidade do homem, a qual, então, atingiria não só sua mente, mas também seu corpo.

Momento decisivo

Essa dessimbolização do mundo ocorre num momento decisivo da aventura humana: é a primeira vez na história do ser vivo que uma criatura chega a ler a escrita da qual ela é a expressão. Com tal seqüência, tornou-se possível um acontecimento incrível: o instante em que a criatura vai poder voltar à criação para se refazer. O instante em que a criatura vai interferir em sua criação e pôr-se como seu próprio criador. Chega, pois, o momento inconcebível em que uma espécie vai poder intervir em seu próprio devir substituindo as leis naturais da evolução.

Tudo acontece como se a recomendação humanista lançada no Renascimento por um de seus grandes pensadores, Pic de la Mirandole, tivesse sido ouvida além de todos os limites. Pic queria introduzir, de encontro às antigas formas de dominação absoluta pelo divino, um pouco de livre arbítrio humano. Deste modo, convocava o homem a “esculpir sua própria estátua ”. O apelo foi ouvido por toda a filosofia posterior, pois esta pode ser considerada como um desenvolvimento muito longo do tema do livre arbítrio humano, da construção do cogito cartesiano ao tema da morte de Deus em Nietzsche, passando pelo ideal crítico do Iluminismo.

Ora, o homem atual está em via de ultrapassar esse ideal dado que, se estiver efetivamente em via de “esculpir sua própria estátua”, esta bem poderia ser uma estátua viva, chamada a substituir a do próprio homem. Observemos, de passagem, que isso não seria nada menos que o fim da filosofia, que seria abrangida numa tal intenção de redefinição das bases materiais da humanidade.

Sua realização suporia, de fato, a transformação irremediável de um empreendimento, incessantemente relançado desde a Antiguidade, de reforma do espírito (pela ascese, pela busca da autonomia, pela refundação do entendimento) num objetivo puramente tecnicista de modificação do corpo. Mas de que serviria ganhar um corpo novo se isto significasse perder o espírito?

Fukuyama e a “pós-humanidade”

É mais importante ainda colocar a questão à medida que existe um programa difuso de fabricação de uma “pós-humanidade”. Tal programa é dissimulado, quase não se lhe dá publicidade. Não se deve assustar os homens; principalmente, eles não podem compreender que os fazem trabalhar na abolição da humanidade – isto é, em seu próprio desaparecimento. O mundo do ser vivo foi de tal forma cercado pelo capitalismo, a fim de nele desenvolver novos espaços para a mercadoria, que algumas de suas conseqüências possíveis sobre a própria humanidade acabaram atravessando o muro do silêncio. É assim que Francis Fukuyama – o arauto do neoliberalismo, que havia proclamado, depois da queda do muro de Berlin, o início do “fim da história” com o advento generalizado das democracias neoliberais – teve que se retrair e admitir que o triunfo do mercado não era o último episódio da história humana. Um outro se seguiria: a transformação biológica da humanidade . Mas este abrir de olhos não lhe foi senão a oportunidade de cair num novo erro de avaliação.

Francis Fukuyama quer acreditar que o neoliberalismo poderá preservar-nos dessa engrenagem fatal… quando é ele que nos leva diretamente a ela! Para ele, na verdade, a democracia de mercado seria um estado perfeito se não estivesse ameaçado pelo desenvolvimento de algumas técnicas: “Uma técnica suficientemente poderosa para remodelar o que somos pode bem ter conseqüências potencialmente ruins para a democracia libera l.”

Evidentemente, é necessário convir quanto a isto: se não há mais homens, a democracia corre o risco de se esvaziar. Para evitar semelhante perigo, bastaria, segundo Fukuyama, que “os países regulassem politicamente o desenvolvimento e a utilização da técnica”. Piedosa intenção que não come pão e que lhe permite manter-se em silêncio a respeito do essencial: é o mercado que mantém o desenvolvimento infindável das tecno-ciências, as quais, não reguladas, conduzem diretamente para uma saída fora da humanidade.

Da pós modernidade à pós história

Este elo, no entanto, é claro: dado que o mercado implica o fim de qualquer forma de inibição simbólica (isto é, o fim da referência a qualquer valor transcendental ou moral em proveito unicamente do valor comercial), nada, caso se permaneça nesta lógica, poderá impedir que o homem se liberte de qualquer ideia que pretenda mantê-lo em seu lugar e que saia de sua condição ancestral tão logo tenha os meios para tal. Portanto, não é a ciência sozinha, como se diz com freqüência, e sim a ciência mais o efeito deletério do mercado sobre os valores transcendentais que estariam em condições de permitir a realização desse programa. É preciso, pois, se colocar a questão: existirá, em nossas democracias pós-modernas onde se pode dizer tudo, uma instância política para decidir se nós queremos ou não essa mutação? Nada é menos certo.

Ora, a ausência desse lugar tem um peso importante. Vê-se onde o programa de fabricação de uma pós-humanidade poderia levar: diretamente à entrada numa era de produção de indivíduos ditos superiores tendo escapado à geração. E indivíduos inferiores para as tarefas subalternas. A existência, banalizada, de organismos geneticamente modificados deveria pôr a pulga atrás da orelha: poder-se-ia, a curto prazo, empreender fabricar, por clonagem e modificação genética, novas variantes humanas. É até verossímil que experimentações estejam em curso ou possam não demorar a estar.

Quando esse dia chegar, teremos passado da pós-modernidade, período perturbado pelo desmoronamento dos ídolos, à pós-história. Se ninguém pode prever o que será isto, pode-se, entretanto, dizer o que não será mais. Porque significa o desenlace de cinco grandes topoï da humanidade: o fim da humanidade comum, o fim da fatalidade costumeira da morte, o fim da individualização, o fim do ordenamento (problemático) entre os sexos e a desorganização da sucessão de gerações.

Perigo para o animal inacabado

O perigo que ameaça a espécie humana não é só o perigo eugênico. O que está em perigo, a curto prazo, é também e simplesmente a conservação e a perpetuação da própria espécie. Esta conservação não procede de si mesma; ela passa por um contexto simbólico e cultural. Isto se explica pelo fato, reconhecido por uma parte da pesquisa paleoantropológica, de que o homem é concebível como um ser de nascimento prematuro, incapaz de atingir seu desenvolvimento germinal completo e, entretanto, capaz de se reproduzir e de transmitir suas características de juvenilidade, normalmente transitórias entre os outros animais. Fala-se a esse respeito da neotenia do homem. Ela implica que este animal, não acabado, diferentemente dos outros animais, deve acabar-se em outro lugar que não na primeira natureza, isto é, numa segunda natureza, geralmente chamada cultura.

Encontram-se muitas coisas nessa segunda natureza: deuses, relatos, gramáticas referindo-se a qualquer objeto do mundo (as estrelas, os seixos, os micróbios, a música, a narrativa, o cálculo, a subjetividade, a sociabilidade…), uma intensa atividade protética (todos os objetos que permitem a esse animal não acabado habitar o mundo), leis, princípios, valores… Ora, se esse quadro for deteriorado, se as leis e os princípios que o regem se tornarem fluidos, pode-se esperar não só efeitos individuais e sociais deletérios, mas também ameaças sobre a espécie, pois nada mais será suficientemente legítimo para se opor a manipulações visando a transformá-la assim que possível.

A domesticação do Ser

Algumas vozes já se fazem ouvir na intelligentsia para acolher a suposta boa nova e próxima mutação do homem. De modo muito especial, o filósofo alemão Peter Sloterdijk, que já se tornara famoso por haver feito no final de 1999, no além-Reno, uma conferência intitulada Règles pour le parc humain [Regras para o parque humano] , por ocasião de um seminário dedicado a Heidegger. Esta conferência suscitou uma grande controvérsia, particularmente com Jürgen Habermas. Os propósitos desse “nietzschiano de esquerda” parecem muito significativos do modo como a desregulamentação simbólica atual pode confundir as mentes.

Numa outra conferência realizada no Centro Georges Pompidou, em março de 2000, Sloterdijk retomou uma tese de Heidegger, mas para invertê-la. Não se tratava mais de dizer que a técnica era “esquecimento do Ser”, mas de proclamar que ela contribui para a “domesticação do Ser”, sendo esse o atributo maior do homem neotênico, levado a se produzir a si mesmo. Como se a técnica fosse a única conquista do homem neotênico e o contexto simbólico que faz prescrições e proibições nunca tivesse existido! Com tais premissas, todas as conseqüências possíveis da técnica são justificadas antecipadamente. Por outro lado, a deliberação moral é tão pouco levada em consideração que, nesse discurso “desinibido”, só a técnica é que pode determinar uma ética – não uma ética qualquer, mas, sim, uma “ética do homem maior” e, enquanto tal, aberta às “auto-manipulações biotecnológicas”.

A substituição do “homem primeiro”

Nesse discurso, a ética consiste, pois, em afastar qualquer forma de exame moral. É assim que o homem, puxado para fora de si mesmo pelo Ser, estaria encarregado de mudar sua condição biológica para se abrir à multiplicidade biológica. O homem, nascido insuficiente e sendo produto da técnica, não teria outra coisa a fazer senão levar a técnica a suas últimas conseqüências. Deste modo, o velho homem deveria ser rebatizado de “homem primeiro” – em que se pode ouvir um claro eufemismo de “primitivo” (como em “museu das Artes Primeiras”) –, porque este homem já é somente um primitivo diante dos homens superiores que devem vir. Não se devia provocar a alucinação da volta do Ser na sinistra farsa histórica do nazismo – não havia ali senão um lamentável equívoco de meu caro mestre, parece dizer Sloterdijk. Não, é hoje que se dá o verdadeiro êxtase: o homem superior, o verdadeiro, chega e seus aduladores já o louvam e funcionam como polícia para lhe abrir caminho.

Ora, esse caminho está cheio de “homens primeiros” – eis o problema. Para nosso profeta, o velho homem primitivo é manhoso, é constitutivamente surdo – e eu cito – com “generoso potencial” de transformação “polivalente”. Pior ainda, por seu “antigo egoísmo”, ele só prestaria para “exercer o poder sobre as matérias-primas” para “delas dispor” a fim de livrá-las das mudanças prometidas – onde se compreende que tais “matérias-primas” poderiam até ser o próprio corpo humano. Evidentemente, esse velho homem não seria senão “o homem do ressentimento”, prestes a fazer “reuniões” para arregimentar “populações desinformadas” e levá-las a “falsos debates sobre ameaças não compreendidas, sob a autoridade severa de editorialistas lascivos”… Abaixo, pois, os velhos “humanólatras” que pretendem, movidos por “uma histeria anti-tecnológica”, opor-se ao salto para o qual o Ser nos chama porque, é evidente, não há “nada de perverso” em querer “se transformar através da auto-técnica”…

Projeto pós-nazista

Esses propósitos de Sloterdijk – por seu próprio exagero – são muito úteis:  permitem compreender que a atual desinibição simbólica não é somente uma questão de libertação dos costumes e de saída mais ou menos dolorosa do patriarcado. De fato, a suspensão atual das proibições revela que perdura um verdadeiro projeto pós-nazista de sacrifício do humano. Ele é sustentado pelo anarco-capitalismo que, ao mesmo tempo em que quebra todas as regulamentações simbólicas, possibilita que a técnica avance sozinha até quebrar a humanidade.

“O discurso capitalista”, já dizia o doutor Lacan, “é algo de loucamente astucioso […], funciona perfeitamente, não pode funcionar melhor. Mas justamente funciona depressa demais, se consome. Consome-se tão bem que se esgota 10 .” Em suma, o verdadeiro problema do capitalismo é que ele funciona bem demais. Tão bem que um dia acabaria consumindo tudo: os recursos, a natureza, tudo – até e inclusive os indivíduos que o servem. Na lógica capitalista, esclarecia Lacan, “o antigo escravo foi substituído” por homens reduzidos à condição de “produtos”: “produtos […] consumíveis tanto quanto os outros 11 .” Esta observação permite compreender que é exatamente nesse sentido muito ameaçador que devem ser entendidas as expressões levianamente eufóricas que se encontram em toda a literatura neoliberal: “o material humano”, o “capital humano”, a gestão esclarecida dos “recursos humanos” e a “boa governança ligada ao desenvolvimento humano”.

O anarco-capitalismo acreditou na ideia de que o dar-se leis é cruel e só confina a uma espécie de masoquismo insuportável. E remete cinicamente os que teriam necessidade de um suplemento de alma ao puritanismo obscurantista. É preciso, portanto, lembrar que os filósofos do Iluminismo, como Jean-Jacques Rousseau e Emmanuel Kant, diziam que a liberdade consiste apenas em obedecer às leis que o homem se deu. De fato, temos necessidade de verdadeiras leis jurídicas e morais – e não desses sucedâneos moralizantes – para, enfim, fazer justiça, para salvaguardar o mundo antes que seja tarde demais, para preservar a espécie humana ameaçada por uma lógica cega. Ora, estamos em via de ab-rogar todas as leis – exceto as do mais forte – e, se continuarmos nessa funesta direção, entraremos numa crueldade bem mais intensa que a de ter que se submeter a leis. Entraremos numa crueldade desconhecida que consiste em querer modificar esse corpo humano velho de 100 mil anos. Para, a partir dele, tentar improvisar outros.

(Trad: Iraci D. Poleti)

1 – Ver, de Dany-Robert Dufour, L’art de réduire les têtes ? sur la nouvelle servitude de l’homme libéré à l’ère du capitalisme total, Denoël, Paris, 2003.

2 – Karl Marx, Manifeste communiste, trad. Lafargue, Ed. sociales, Paris, 1976, p. 35

3 – Pic de la Mirandole [1463-94], Discours sur la dignité de l’homme, citado por Jean Carpentier, Histoire de l’Europe, Points, Seuil, Paris, 1990, p 224-225

4 – Em “La fin de l’Histoire dix ans après”, Fukuyama repete seu credo: “A democracia liberal e a economia de mercado são as únicas possibilidades viáveis para nossas sociedades modernas”. Mas ele reconhece uma insuficiência quanto à sua concepção do fim da história: “A História não pode se acabar enquanto as ciências da natureza não chegarem a seu termo. E estamos à véspera de novas descobertas científicas que, por sua própria essência, suprimirão a humanidade

enquanto tal.”. Le Monde, 17 de junho de 1999.

5 – Cf. Francis Fukuyama, La Fin de l’homme: Les Conséquences de la révolution biotechnique, La Table Ronde, Paris, 2002.

6 – Ver os trabalhos do grande antropólogo norte-americano Stephen Jay Gould: Darwin et les grandes énigmes de la vie, [1977], Pygmalion, Paris, 1979, e Le pouce du Panda [1980], Grasset, Paris, 1982.

7 – Ver, de Peter Sloterdijk, Règles pour le parc humain, Mille et une nuits, Paris, 2000.

8 – Conferência retomada numa coletânea intitulada La Domestication de l’Etre, Mille et une nuits, Paris, 2000. Todas as citações que seguem foram extraídas desta obra.

9 – De fato, essa diversificação já está em curso: o semanário norte-americano Science, de 27 de julho de 2001, relatava que uma equipe norte-americana conseguiu implantar células-ovo cerebrais humanas no interior de cérebros de fetos de macaco Macaca radiata por volta da décima segunda semana de gestação, tal implantação podendo levar à criação de macacos cujos cérebros teriam sido, deste modo, mecanicamente “humanizados”.

10 – Jacques Lacan, “Conférence à l’université de Milan”, 12 de maio de 1972, texto inédito.

11 – Jacques Lacan, L’Envers de la Psychanalyse, Seuil, Paris, 1991, sessão de 17 de dezembro de 1969, p. 35.

 PUBLICADO EM LE MONDE DIPLOMATIQUE, abril 2005

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19
Ago15

Ars Moriendi

por Hilton Besnos

Paragem

De quando em quando, desde sempre, penso em como morremos, no quanto nos são dificultadas as ações que possibilitam a cada um de nós morrer em paz. Penso, aqui, em uma maneira de morrer que está além (ou aquém) do imponderável, ou seja, não na morte súbita causada por uma doença, por um acidente ou por um crime fatais, por exemplo. No passado, enxerguei no suicídio uma alternativa satisfatória, mas hoje entendo que ele não corresponde a um modo de morrer em paz. O suicídio implica em uma deliberação clara quanto ao quando morrer, mas o ato suicida quase sempre coincide com procedimentos que dificilmente têm conotações apaziguantes. Com frequência, a cena do suicídio é dramática e, sobretudo, é tão feia quanto qualquer outra cena de morte. Quando penso em morrer em paz, penso em uma maneira de morrer que seja bela, em uma deliberação clara no sentido da beleza do morrer. Não penso, aqui, no morrer como figura de linguagem ou como abstração, mas no morrer em si, em alguém que morre, em cada um de nós que morre. Penso na necessidade de beleza no morrer da carne. A morte é inevitável e o que é inevitável não é feio nem belo. Penso, ao contrário, no que é evitável no que concerne àquele morrer que contém mais ou menos vagar: penso que a feiura é, muitas vezes, evitável e que, nestes casos, a beleza deve ser inevitável. Penso, enfim, que a construção de uma cultura que acalente o ato de decidir sobre como morremos —a arte de morrer—, é um passo no sentido da deliberação da beleza e, virtualmente, da nossa reconciliação com o fato de que morremos.

Veredas

Vilém Flusser

O escritor Vilém Flusser sugere, em seu livro de 1983, “Pós-História”, que “se aprendermos tal arte suprema, ars moriendi, o terror da atualidade virará aventura, experiência do belo”. Embora ele escreva sobre o mundo em geral que aterroriza e, de certa forma, empregue o termo ars moriendi significando algo ligeiramente distinto dos textos do século XV —que consistiam, grosso modo, em recomendações para uma boa morte de acordo o cristianismo da época—, penso que as suas palavras são úteis no sentido de incorporar o morrer como uma experiência do belo. Ars Moriendi, a arte de morrer, segundo Flusser, consiste em “descobrir a beleza no terror do evento”. Dominar esta arte requer aprender a amar a morte, “amar o futuro que não é mais nosso”. Sem este aprendizado não se pode pensar em uma maneira de morrer que seja bela. Sem reconhecer amorosamente a morte somente podemos aceitar como fatalidade toda a feiura que anuncia a hora de morrer. Dominar a arte de morrer é o esforço de trazer a morte para o nosso domínio, é encarná-la. Se formos capazes de amar a substância da morte encarnada em nós, abrimos a possibilidade para que o verbo morrer seja conjugado fora do domínio do verbo sofrer. Morrer, assim, pode ser uma experiência imediata, isto é, que não necessariamente deve passar pelas mídias do sofrimento, da dor e da decadência, ou seja, que dispensa e repele o intermediário da feiura.

Dizemos que a nossa morte é a única certeza que podemos ter e que tudo mais é incerto. Ou, como também escreveu Flusser, no artigo “O Tema Exclusivo”, na década de 1960, “O homem, como ser pensante, é com efeito o único ser vivo que sabe da morte. O saber da morte me parece ser o traço distintivo do homem”. Isto mostra que não levamos a sério justamente o que sabemos com certeza e que nos esforçamos em transformar em certeza aquilo que certamente não sabemos, ainda que jamais o façamos com sucesso.  Mas não há leviandade neste esforço sempre frustrado, pois, como bem observa Flusser, “A morte admite somente duas atitudes: negá-la e continuar representando, ou aceitá-la e cair no mutismo”. O que não conseguimos fazer é justamente cair no mutismo e, neste sentido, a própria ars moriendi, a arte de morrer, é essencialmente uma maneira de negar a morte. Não é difícil entender a razão disto, já que a arte está intimamente relacionada à noção de criação. Quando penso em deliberar no sentido da beleza na morte, penso sobretudo na criatividade ao morrer, ou seja, penso em usar a certeza e o saber da morte a favor da beleza. Há um absurdo nesta deliberação que faz da ars moriendi algo pouco sério, mas, afinal, como escreveu Rainer Maria Rilke, “A morte é grande. Nós somos os seus de boca ridente”.

No livro “Vampyrotheutis infernalis”, composto em 1987 por Vilém Flusser em parceria com o biólogo Louis Bec, podemos ler que “só podemos saber o que sabemos fazer”. Então, se sabemos da morte é porque sabemos morrer, dominamos a ars moriendi. Arte, segundo Flusser, “é o gesto pelo qual o homem imprime sua vivência sobre o objeto de sua vocação, a fim de realizar-se nele, imortalizar-se nele”. Praticam a arte de morrer os que atendem ao chamado da morte no sentido de informá-la, de imprimir sua vivência nela, de realizar-se nela, de imortalizar-se nela, e que, neste processo, são também modificados por ela. Como somos todos chamados pela morte, somos todos praticantes da arte de morrer. É neste sentido que a ars moriendi é uma arte suprema. Também é neste mesmo sentido que a arte de morrer é habitual, pois estamos habituados à morte. Mas é um hábito que não cultivamos, que, sempre que podemos, preferimos deixar para depois, e que, por isto, persiste sendo assombrado pela feiura. Em outros termos, sabemos da morte e sabemos morrer, mas acabamos quase sempre morrendo mal e em meio à feiura. De tanto protelarmos e adiarmos a prática da ars moriendi, ficamos literalmente sem tempo para fazer o difícil e necessário salto do feio para o belo no que se refere ao morrer.

Tatsumi Hijikata

Em seu livro “Retratos Japoneses: Crônicas da vida pública e privada”, o crítico de cinema, cineasta e escritor norte-americano radicado no Japão Donald Richie assim se lembra de Tatsumi Hijikata: “mal entrado nos trinta, quando teria apenas mais trinta pela frente e já pensava na morte, procurava por ela, incorporando-a em suas obras”. Não é tarefa simples apresentar o japonês Hijikata (1928-1986), mas Richie, seu amigo por décadas, mostra o inventor do projeto chamado Ankoku Butoh como um homem comum e até engraçado. Ankoku Butoh tem sido traduzido como Dança das Trevas(ankoku=trevas; butoh=dança). Prefiro traduzir como Não-Dança porque parece refletir melhor o objetivo de persistente negação de Hijikata e, também, pelo fato de ser um projeto que, por uma ou outra razão, nem sempre esteve relacionado estritamente à dança. Mas vou usar, aqui, os termos butô de Hijikata e dança de Hijikata que sinto como sendo ensaios ou práticas da ars moriendi, ou seja, da arte que tem como matéria a morte, da arte de informá-la.

“O primeiro movimento é a morte”, escreve Stephen Barber no livro “Hijikata: Revolt of the Body”, de 2006. Mas como seria este movimento? Donald Richie relata um gesto de Hijikata: “Veja, disse certa vez, caindo gradualmente, com os joelhos se aproximando do peito, braços cruzados, punhos torcidos, dedos abertos: É como morrer”. É um gesto muito peculiar de Hijikata que pode ser visto, com inúmeras variações, nos documentos que retratam a sua dança. Este gesto aparece até mesmo nos filmes comerciais em que atuou, como “Horrors of  Malformed Men” (1969) e “Blind Woman’s Curse” (1970), ambos dirigidos por Teruo Ishii. Como salienta Richie, estes gestos “não eram dramatizados, apenas estavam ali. Não era algo para a dança expressar, mas para o corpo mostrar”. É um gesto que simplesmente estava no corpo de Hijikata e ele o mostrava como uma manifestação de suas palavras: “Eu gostaria de ter dentro do meu corpo uma pessoa que já tenha morrido e que siga morrendo repetidas vezes”. Era a repetição de sua ars moriendi em atuações diversas, mas sobretudo em fotografias e filmes que eram, outornaram-se, espaços privilegiados da sua dança.

Em seu pequeno texto apresentando Hijikata, Donald Richie descreve o contexto em que se encontra: um evento acadêmico organizado em homenagem ao inventor do Ankoku Butoh. Não é difícil sentir no seu texto uma ponta de desprezo sorridente pelo que teriam dito, pois Richie não relata o que disseram, os acadêmicos naquele evento. O mesmo tom, ainda que mais difuso e diluído, aparece no livro de Stephen Barber.  Sinto que tanto Richie quanto Barber buscam, sobretudo, tornar sensível a presença de Hijikata, o seu próprio corpo e o que eu chamo (talvez incorretamente, o que não me preocupa) de sua ars moriendi. Nenhum dos dois imobiliza e disseca Hijikata por meio de instrumentos cirúrgicos de análise. Desta forma, ambos possibilitam que os seus respectivos hijikatas morram e continuem morrendo repetidas vezes dentro de seus textos e, talvez, de seus próprios corpos. Através dos textos de Richie e Barber, tenho a chance de também sentir Hijikata morrendo e continuar morrendo repetidas vezes dentro de mim. Vejo e revejo as fotografias e os filmes que retratam Hijikata em busca deste mesmo sentimento. Li, sim, alguns textos mais analíticos e outros acadêmicos, mas eles mostraram ter um enorme defeito: eles não deixam Hijikata morrer e seguir morrendo em mim.

Roland Barthes

Em seu último livro, “A Câmara Clara”, de 1980, Roland Barthes escreve que a fotografia representa “esse momento muito sutil em que, para dizer a verdade, não sou nem um sujeito nem um objeto, mas antes um sujeito que se sente tornar-se objeto: vivo então uma micro experiência da morte (do parêntese): torno me verdadeiramente espectro”. De algum modo, talvez oblíquo, a fotografia relaciona-se com a ars moriendi.  Mas como? Barthes sugere que “é preciso que a morte, em uma sociedade, esteja em algum lugar; se não está mais (ou está menos) no religioso, deve estar em outra parte: talvez nessa imagem que produz a Morte ao querer conservar a vida”. A julgar pela proliferação da fotografia no mundo atual, é possível deduzir que a morte está por toda parte, que todos posamos para morrer o tempo todo e, principalmente, que morremosde forma chã nas gavetas, nas cestas de lixo ou na vacuidade dos dispositivos de comunicação digitais. O que mais perturba Barthes é o fato da fotografia ser umcertificado de presença, uma prova irrefutável, e, consequentemente, também umatestado de óbito. O que me perturba é que nos preocupamos obsessivamente com a suposta boniteza das  poses que visam certificar a nossa presença, mas continuamos aparecendo de forma desajeitada e feia nos nossos atestados de óbito.

A professora Leyla Perrone-Moisés observa em seu pequeno livro “Roland Barthes: O Saber com Sabor”, de 1983, que “como a anunciar sua morte próxima, em A Câmara Clara o corpo de Barthes já se desprende de seu texto, deixando neste, a silhueta evanescente”. Barthes morreu em 1980, poucos meses após a publicação de “A Câmara Clara”. A qualidade espectral do livro faz dele uma espécie de auto-retrato de Barthes em fotografia, ou seja, uma experiência da morte como ele próprio a definiu. A escritora Susan Sontag observa em seu livro “Sob o Signo de Saturno”, de 1980, que Barthes “era particularmente sensível ao fascínio exercido pela penetrante notação que é a fotografia. Das fotos que escolheu para Roland Barthes por Roland Barthes [1975], a mais tocante, talvez, mostra uma criança bastante desenvolvida, Barthes aos dez anos, carregada, agarrada à jovem mãe (ele a intitulou A Demanda do Amor)”. Olho, agora, para esta foto e leio no texto que o acompanha: “a fotografia de juventude é, ao mesmo tempo, muito indiscreta (é meu corpo de baixo que nela se dá a ler) e muito discreta (não é de ‘mim’ que ela fala)”.

No prefácio de seu livro “Sade, Fourier, Loyola”, de 1971, Barthes escreve que “o autor que vem do seu texto e vai para dentro da nossa vida não tem unidade; é um simples plural de ‘encantos’, o lugar de alguns pormenores tênues, fonte, entretanto, de vivos lampejos romanescos, um canto descontínuo de amabilidades, em que lemos apesar de tudo a morte com muito mais certeza que na epopeia de um destino; não é uma pessoa (civil ou moral), é um corpo”. O morto, a morte e o morrer que vêm para dentro de nossas vidas como um plural de encantos e um canto descontínuo de amabilidades sugerem, para mim, uma realização possível da beleza na ars moriendi. O autor vem do seu texto para dentro de nós como fragmentos ou, segundo Barthes, como átomos epicuristas ou, ainda com Barthes, como revoada cintilante de puncta — coletivo depunctum: “o punctum de uma foto é esse acaso que, nela, me punge (mas também me mortifica, me fere)”.

O Chá

“No fim da sua vida, (…) minha mãe estava fraca, muito fraca. Eu vivia em sua fraqueza (era-me impossível participar de um mundo de força, sair à noite, toda mundanidade me causava horror). Durante sua doença, eu cuidava dela, estendia-lhe a tigela de chá de que ela gostava, porque nela podia beber de maneira mais cômoda do que em uma xícara (…)”, lembra Roland Barthes em “A Câmara Clara”. No quarto daquele apartamento em Paris, no final da década de 1970, esta cerimônia do chá plena de verdade. Segundo a professora Madalena Hashimoto, em seu livro  “Pintura e Escritura do Mundo Flutuante”, de 2002, “na cerimônia do chá, o chá é mais um coadjuvante neste universo que almeja, através do exercício de cada movimento, chegar à perfeição do esquecimento de si, do se por a serviço do homenageado”. Perfeitamente esquecido de si, Barthes era um mestre do chá autêntico, um verdadeiro retirado-do-mundo. Hashimoto explica que “na cerimônia do chá, chanoyu, o retiro-do-mundo toma forma como ritual, como possibilidade diária de contato com um outro mundo”. Que outro mundo seria este? Barthes, afinal, havia se retirado para qual mundo?

Kakuzo Okakura (Tenshin), em seu “O Livro do Chá”, de 1906, escreve que a morada do chá é “uma estrutura efêmera, construída para abrigar um impulso poético”; Hashimoto a define como o “palco de um outro mundo”. No apartamento parisiense convertido em palco de outro mundo, Barthes dava vazão aos seus impulsos poéticos: cuidar de sua mãe (poesia da cogitação); fazer da fraqueza da mãe a sua própria, tornar-se ela (poesia da alteridade); sofrer a doença da mãe (poesia da dolência); recolher-se (poesia da clausura); abdicar da força (poesia da propensão). Dedicava-se integralmente à ars moriendi em sua morada do chá. De acordo com certas linhagens filosóficas do chá, adentrá-la equivale a uma passagem para outro mundo, o que, de um ponto de vista da ars moriendi, é o mesmo que morrer. Na casa de chá construída pelo mestre do chá Sen No Rikyu (1522-1591), por exemplo, entra-se através de uma porta estreita e baixa (nijiriguchi) em que os convivas são forçados a curvar-se e a arrastar-se (além de deixar qualquer tipo de armamento do lado de fora) rumo ao seu interior. Este modo de acesso ao palco do outro mundo é significativa, pois à época de Rikyu havia aqueles que não eram obrigados a curvar-se para ninguém e os que viviam curvados. De acordo com o texto de Barthes em “O Império dos Signos”, de 1970, pode-se entender esta curvatura graficamente, como a escrita da forma vazia. Para entrar na casa de chá de Rikyu é necessário esvaziar-se, tornar-se vacuidade. Em outros termos, é preciso morrer para habitá-la.

No livro “The Unknown Craftsman”, composto de artigos escritos por Sōetsu Yanagi entre 1927 e 1954 compilados e traduzidos pelo ceramista Bernard Leach, pode-se ler que “O Chá é uma religião da beleza”. Yanagi insiste no fato de que tudo aquilo que perfaz a cerimônia do chá, que ele prefere chamar mais apropriadamente de Chanoyu, ou O Caminho do Chá, foi inventado pelos mestres do chá, como Rikyu. Antes dos mestres do chá, não havia utensílios do chá, não havia o aposento do chá, não havia o caminho do chá: eles inventaram tudo isto e, principalmente, abriram o caminho do chá. É neste sentido que, conforme Yanagi, o Chá pode ser entendido como uma religião da beleza. Em outros termos, “religião e arte são disciplinas criadoras de língua”, como escreve Vilém Flusser em seu livro “Língua e Realidade”, de 1963. Os mestres do chá criaram uma língua nova que vem se propagando até os dias de hoje. Uma língua complexa que Yanagi alerta não ser “brincadeira infantil”, pois que demanda grande esforço. O nosso cotidiano prova que seguir ou abrir um Caminho do Chá rumo à Iluminação e à Beleza, ou seja, morrer belamente ao longo deste trajeto, não é opção da maioria, que, aliás, acaba morrendo em meio à feiura dos atalhos e becos sem saída. A ars moriendi é uma língua em desuso, inatual, fora de moda: é uma arte extemporânea. AKIRA UMEDA

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Publicado na Revista ÉPOCA em 10/09/2012

http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/eliane-brum/noticia/2012/09/doutor-advogado-e-doutor-medico-ate-quando.html#header_comentarios

 

Doutor Advogado e Doutor Médico: até quando?

Por que o uso da palavra “doutor” antes do nome de advogados e médicos ainda persiste entre nós? E o que ela revela do Brasil?

ELIANE BRUM

 
Eliane Brum, jornalista, escritora e documentarista (Foto: ÉPOCA)
 
Eliane Brum, jornalista, escritora e documentarista. Ganhou mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de reportagem. É autora de um romance – Uma Duas (LeYa) – e de três livros de reportagem: Coluna Prestes – O Avesso da Lenda (Artes e Ofícios), A Vida Que Ninguém Vê (Arquipélago Editorial, Prêmio Jabuti 2007) e O Olho da Rua (Globo). E codiretora de dois documentários: Uma História Severina e Gretchen Filme Estrada. elianebrum@uol.com.br
@brumelianebrum (Foto: ÉPOCA)
 

Sei muito bem que a língua, como coisa viva que é, só muda quando mudam as pessoas, as relações entre elas e a forma como lidam com o mundo. Poucas expressões humanas são tão avessas a imposições por decreto como a língua. Tão indomável que até mesmo nós, mais vezes do que gostaríamos, acabamos deixando escapar palavras que faríamos de tudo para recolher no segundo seguinte. E talvez mais vezes ainda pretendêssemos usar determinado sujeito, verbo, substantivo ou adjetivo e usamos outro bem diferente, que revela muito mais de nossas intenções e sentimentos do que desejaríamos. Afinal, a psicanálise foi construída com os tijolos de nossos atos falhos. Exerço, porém, um pequeno ato quixotesco no meu uso pessoal da língua: esforço-me para jamais usar a palavra “doutor” antes do nome de um médico ou de um advogado.

Travo minha pequena batalha com a consciência de que a língua nada tem de inocente. Se usamos as palavras para embates profundos no campo das ideias, é também na própria escolha delas, no corpo das palavras em si, que se expressam relações de poder, de abuso e de submissão. Cada vocábulo de um idioma carrega uma teia de sentidos que vai se alterando ao longo da História, alterando-se no próprio fazer-se do homem na História. E, no meu modo de ver o mundo, “doutor” é uma praga persistente que fala muito sobre o Brasil. Como toda palavra, algumas mais do que outras, “doutor” desvela muito do que somos – e é preciso estranhá-lo para conseguirmos escutar o que diz.

Assim, minha recusa ao “doutor” é um ato político. Um ato de resistência cotidiana, exercido de forma solitária na esperança de que um dia os bons dicionários digam algo assim, ao final das várias acepções do verbete “doutor”: “arcaísmo: no passado, era usado pelos mais pobres para tratar os mais ricos e também para marcar a superioridade de médicos e advogados, mas, com a queda da desigualdade socioeconômica e a ampliação dos direitos do cidadão, essa acepção caiu em desuso”.

Em minhas aspirações, o sentido da palavra perderia sua força não por proibição, o que seria nada além de um ato tão inútil como arbitrário, na qual às vezes resvalam alguns legisladores, mas porque o Brasil mudou. A língua, obviamente, só muda quando muda a complexa realidade que ela expressa. Só muda quando mudamos nós.

Historicamente, o “doutor” se entranhou na sociedade brasileira como uma forma de tratar os superiores na hierarquia socioeconômica – e também como expressão de racismo. Ou como a forma de os mais pobres tratarem os mais ricos, de os que não puderam estudar tratarem os que puderam, dos que nunca tiveram privilégios tratarem aqueles que sempre os tiveram. O “doutor” não se estabeleceu na língua portuguesa como uma palavra inocente, mas como um fosso, ao expressar no idioma uma diferença vivida na concretude do cotidiano que deveria ter nos envergonhado desde sempre.

Lembro-me de, em 1999, entrevistar Adail José da Silva, um carregador de malas do Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, para a coluna semanal de reportagem que eu mantinha aos sábados no jornal Zero Hora, intitulada “A Vida Que Ninguém Vê”. Um trecho de nosso diálogo foi este:

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– E como os fregueses o chamam?
– Os doutor me chamam assim, ó: “Ô, negão!” Eu acho até que é carinhoso.

– O senhor chama eles de doutor?
– Pra mim todo mundo é doutor. Pisou no aeroporto é doutor. É ó, doutor, como vai, doutor, é pra já, doutor….

– É esse o segredo do serviço?
– Tem que ter humildade. Não adianta ser arrogante. Porque, se eu fosse um cara importante, não ia tá carregando a mala dos outros, né? Sou pé de chinelo. Então, tenho que me botar no meu lugar.

A forma como Adail via o mundo e o seu lugar no mundo – a partir da forma como os outros viam tanto ele quanto seu lugar no mundo – contam-nos séculos de História do Brasil. Penso, porém, que temos avançado nas últimas décadas – e especialmente nessa última. O “doutor” usado pelo porteiro para tratar o condômino, pela empregada doméstica para tratar o patrão, pelo engraxate para tratar o cliente, pelo negro para tratar o branco não desapareceu – mas pelo menos está arrefecendo.

Se alguém, especialmente nas grandes cidades, chamar hoje o outro de “doutor”, é legítimo desconfiar de que o interlocutor está brincando ou ironizando, porque parte das pessoas já tem noção da camada de ridículo que a forma de tratamento adquiriu ao longo dos anos. Essa mudança, é importante assinalar, reflete também a mudança de um país no qual o presidente mais popular da história recente é chamado pelo nome/apelido. Essa contribuição – mais sutil, mais subjetiva, mais simbólica – que se dá explicitamente pelo nome, contida na eleição de Lula, ainda merece um olhar mais atento, independentemente das críticas que se possa fazer ao ex-presidente e seu legado.

Se o “doutor” genérico, usado para tratar os mais ricos, está perdendo seu prazo de validade, o “doutor” que anuncia médicos e advogados parece se manter tão vigoroso e atual quanto sempre. Por quê? Com tantas mudanças na sociedade brasileira, refletidas também no cinema e na literatura, não era de se esperar um declínio também deste doutor?

Ao pesquisar o uso do “doutor” para escrever esta coluna, deparei-me com artigos de advogados defendendo que, pelo menos com relação à sua própria categoria, o uso do “doutor” seguia legítimo e referendado na lei e na tradição. O principal argumento apresentado para defender essa tese estaria num alvará régio no qual D. Maria, de Portugal, mais conhecida como “a louca”, teria outorgado o título de “doutor” aos advogados. Mais tarde, em 1827, o título de “doutor” teria sido assegurado aos bacharéis de Direito por um decreto de Dom Pedro I, ao criar os primeiros cursos de Ciências Jurídicas e Sociais no Brasil. Como o decreto imperial jamais teria sido revogado, ser “doutor” seria parte do “direito” dos advogados. E o título teria sido “naturalmente” estendido para os médicos em décadas posteriores.

Há, porém, controvérsias. Em consulta à própria fonte, o artigo 9 do decreto de D. Pedro I diz o seguinte: “Os que frequentarem os cinco anos de qualquer dos Cursos, com aprovação, conseguirão o grau de Bacharéis formados. Haverá também o grau de Doutor, que será conferido àqueles que se habilitarem com os requisitos que se especificarem nos Estatutos, que devem formar-se, e só os que o obtiverem, poderão ser escolhidos para Lentes”. Tomei a liberdade de atualizar a ortografia, mas o texto original pode ser conferido aqui. “Lente” seria o equivalente hoje à livre-docente.

Mesmo que Dom Pedro I tivesse concedido a bacharéis de Direito o título de “doutor”, o que me causa espanto é o mesmo que, para alguns membros do Direito, garantiria a legitimidade do título: como é que um decreto do Império sobreviveria não só à própria queda do próprio, mas também a tudo o que veio depois?

O fato é que o título de “doutor”, com ou sem decreto imperial, permanece em vigor na vida do país. Existe não por decreto, mas enraizado na vida vivida, o que torna tudo mais sério. A resposta para a atualidade do “doutor” pode estar na evidência de que, se a sociedade brasileira mudou bastante, também mudou pouco. A resposta pode ser encontrada na enorme desigualdade que persiste até hoje. E na forma como essas relações desiguais moldam a vida cotidiana.

É no dia a dia das delegacias de polícia, dos corredores do Fórum, dos pequenos julgamentos que o “doutor” se impõe com todo o seu poder sobre o cidadão “comum”. Como repórter, assisti à humilhação e ao desamparo tanto das vítimas quanto dos suspeitos mais pobres à mercê desses doutores, no qual o título era uma expressão importante da desigualdade no acesso à lei. No início, ficava estarrecida com o tratamento usado por delegados, advogados, promotores e juízes, falando de si e entre si como “doutor fulano” e “doutor beltrano”. Será que não percebem o quanto se tornam patéticos ao fazer isso?, pensava. Aos poucos, percebi a minha ingenuidade. O “doutor”, nesses espaços, tinha uma função fundamental: a de garantir o reconhecimento entre os pares e assegurar a submissão daqueles que precisavam da Justiça e rapidamente compreendiam que a Justiça ali era encarnada e, mais do que isso, era pessoal, no amplo sentido do termo.

No caso dos médicos, a atualidade e a persistência do título de “doutor” precisam ser compreendidas no contexto de uma sociedade patologizada, na qual as pessoas se definem em grande parte por seu diagnóstico ou por suas patologias. Hoje, são os médicos que dizem o que cada um de nós é: depressivo, hiperativo, bipolar, obeso, anoréxico, bulímico, cardíaco, impotente, etc. Do mesmo modo, numa época histórica em que juventude e potência se tornaram valores – e é o corpo que expressa ambas – faz todo sentido que o poder médico seja enorme. É o médico, como manipulador das drogas legais e das intervenções cirúrgicas, que supostamente pode ampliar tanto potência quanto juventude. E, de novo supostamente, deter o controle sobre a longevidade e a morte. A ponto de alguns profissionais terem começado a defender que a velhice é uma “doença” que poderá ser eliminada com o avanço tecnológico.

O “doutor” médico e o “doutor” advogado, juiz, promotor, delegado têm cada um suas causas e particularidades na história das mentalidades e dos costumes. Em comum, o doutor médico e o doutor advogado, juiz, promotor, delegado têm algo significativo: a autoridade sobre os corpos. Um pela lei, o outro pela medicina, eles normatizam a vida de todos os outros. Não apenas como representantes de um poder que pertence à instituição e não a eles, mas que a transcende para encarnar na própria pessoa que usa o título.

Se olharmos a partir das relações de mercado e de consumo, a medicina e o direito são os únicos espaços em que o cliente, ao entrar pela porta do escritório ou do consultório, em geral já está automaticamente numa posição de submissão. Em ambos os casos, o cliente não tem razão, nem sabe o que é melhor para ele. Seja como vítima de uma violação da lei ou como autor de uma violação da lei, o cliente é sujeito passivo diante do advogado, promotor, juiz, delegado. E, como “paciente” diante do médico, como abordei na coluna anterior, deixa de ser pessoa para tornar-se objeto de intervenção.

Num país no qual o acesso à Justiça e o acesso à Saúde são deficientes, como o Brasil, é previsível que tanto o título de “doutor” permaneça atual e vigoroso quanto o que ele representa também como viés de classe. Apesar dos avanços e da própria Constituição, tanto o acesso à Justiça quanto o acesso à Saúde permanecem, na prática, como privilégios dos mais ricos. As fragilidades do SUS, de um lado, e o número insuficiente de defensores públicos de outro são expressões dessa desigualdade. Quando o direito de acesso tanto a um quanto a outro não é assegurado, a situação de desamparo se estabelece, assim como a subordinação do cidadão àquele que pode garantir – ou retirar – tanto um quanto outro no cotidiano. Sem contar que a cidadania ainda é um conceito mais teórico do que concreto na vida brasileira.

Infelizmente, a maioria dos “doutores” médicos e dos “doutores” advogados, juízes, promotores, delegados etc estimulam e até exigem o título no dia a dia. E talvez o exemplo público mais contundente seja o do juiz de Niterói (RJ) que, em 2004, entrou na Justiça para exigir que os empregados do condomínio onde vivia o chamassem de “doutor”. Como consta nos autos, diante da sua exigência, o zelador retrucava: “Fala sério….” Não conheço em profundidade os fatos que motivaram as desavenças no condomínio – mas é muito significativo que, como solução, o juiz tenha buscado a Justiça para exigir um tratamento que começava a lhe faltar no território da vida cotidiana.

É importante reconhecer que há uma pequena parcela de médicos e advogados, juízes, promotores, delegados etc que tem se esforçado para eliminar essa distorção. Estes tratam de avisar logo que devem ser chamados pelo nome. Ou por senhor ou senhora, caso o interlocutor prefira a formalidade – ou o contexto a exija. Sabem que essa mudança tem grande força simbólica na luta por um país mais igualitário e pela ampliação da cidadania e dos direitos. A estes, meu respeito.

Resta ainda o “doutor” como título acadêmico, conquistado por aqueles que fizeram doutorado nas mais diversas áreas. No Brasil, em geral isso significa, entre o mestrado e o doutorado, cerca de seis anos de estudo além da graduação. Para se doutorar, é preciso escrever uma tese e defendê-la diante de uma banca. Neste caso, o título é – ou deveria ser – resultado de muito estudo e da produção de conhecimento em sua área de atuação. É também requisito para uma carreira acadêmica bem sucedida – e, em muitas universidades, uma exigência para se candidatar ao cargo de professor.

Em geral, o título só é citado nas comunicações por escrito no âmbito acadêmico e nos órgãos de financiamento de pesquisas, no currículo e na publicação de artigos em revistas científicas e/ou especializadas. Em geral, nenhum destes doutores é assim chamado na vida cotidiana, seja na sala de aula ou na padaria. E, pelo menos os que eu conheço, caso o fossem, oscilariam entre o completo constrangimento e um riso descontrolado. Não são estes, com certeza, os doutores que alimentam também na expressão simbólica a abissal desigualdade da sociedade brasileira.

Estou bem longe de esgotar o assunto aqui nesta coluna. Faço apenas uma provocação para que, pelo menos, comecemos a estranhar o que parece soar tão natural, eterno e imutável – mas é resultado do processo histórico e de nossa atuação nele. Estranhar é o verbo que precede o gesto de mudança. Infelizmente, suspeito de que “doutor fulano” e “doutor beltrano” terão ainda uma longa vida entre nós. Quando partirem desta para o nunca mais, será demasiado tarde. Porque já é demasiado tarde – sempre foi.

Eliane Brum escreve às segundas-feiras.

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