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O homem, já idoso e só, procurou, aqui e ali, as suas justificativas. Achou-as facilmente, estavam espalhadas por sua casa, por sua história. Depois ele procurou os seus amores, que estavam em multigavetas: sexo, paixão, amizade, reconhecimento, tudo isso e muito mais poderia ser amor. No entanto ele buscou só a palavra amor. Achou e, ali, buscou seu conteúdo: havia alguns nomes, os dos irmãos, os dos amigos. Procurou mais no fundo da gaveta e achou duas fotos antigas, em preto e branco, e reconheceu ser a de seus pais. E quando menos esperava, uma foto três por quatro, já esmaecida pelo tempo, quase saltou-lhe a mão. Mostrava uma mulher bonita, de traços bem definidos e um olhar decidido, que contrastava com a boca pequena, bem feita. Ela, a foto, estava lá, mas ele não a identificou. Estava muito cansado. Viu as fotos dos filhos, e pensou – ingratos! – fechando a gaveta de vez.
E lá ficou a foto do seu amor, no fundo da gaveta, sem que ele, das dezenas de vezes que teve oportunidade em sua vida – a reconhecesse. HILTON BESNOS
Às vezes, quando parece que o mundo todo fala, grita, berra, comenta, discute, eu clico a tecla mode. Isso ocorre no auge da confusão e, a partir daí tudo e todos ficam mudos, imóveis, e eu tenho a maravilhosa sensação de ser um deus. O tempo, contudo, continua fluindo, mas de uma forma imperceptivelmente mais lenta, de maneira que quando cessa o efeito da tecla mode, poucos são os que notam micro-diferenças no relógio e – claro – não dão a mínima importância ao fato.
Mode é tão poderoso que para tudo ao meu redor; então as dimensões tempo-espaço abrem uma nano-bolha virtual, onde me abrigo de todo o ruído, som e palavrório explodindo ao meu redor. Então eu descanso e me integro ao universo. Cada vez que eu clico o botão mágico, a minha vida diminui exatamente o tempo de duração da bolha.
Talvez por isso, por ser uma pessoa desmedida e por não saber controlar minhas ansiedades, eu esteja já tão envelhecido, e minha pele tenha se carcomido tão rapidamente. Tenho tempo para as minhas memórias, e normalmente uso a nano-bolha para escrevê-las, de modo tão lírico que talvez algum descendente se dê ao trabalho de lê-las, entendendo um pouco mais o que sou (ou o que fui, quando lerem).
De todo modo, aqueles momentos maravilhosos me pertenceriam para sempre, me acolheriam. E quando enfim eu encontrasse meu descanso, talvez eterno, talvez não, eu estaria feliz. Poucos são tão bem afortunados, tão agraciados por Deus. Fui ungido, fui escolhido para conhecer a nano-bolha. Eventualmente, quando ao seu abrigo, até neste blog eu escrevo. HILTONBESNOS
O centauro, por menos provável que pareça, não mora nos pampas. O centauro também não é centenário, conforme poderia se pensar; na realidade é bem mais antigo. Alguns o chamam de mito, outros de O MITO, o que é mais interessante, mas o centauro continua por aí, meio arredio, meio sem aparecer nos points de costume. O centauro é um ser muito indeciso, entre a macheza do cavalo e entre o persistente senso de humanidade, e por isso ele é basicamente um bicho-homem (ou um homem-bicho) triste. Se há alguém com quem ele se entenda é com a iara, aquela que é metade peixe, metade gata (alguém já viu uma iara ou uma sereia feias, por acaso?). Com ela sim, o centauro consegue conversar, consegue se sentir bem. Já namoraram, mas nunca além do sentido mais metafórico, porque é impossível a ambos concretizarem seus sonhos eróticos. E isso é, muitas vezes, paralisante.
Nosso centauro se chama Enio e nossa iara se chama Maria Eunice, e eles adoram conversar, contar a respeito de suas experiências, sejam elas bem ou mau sucedidas. Aí teve uma noite em que, embaixo de um luar maravilhoso, se abraçaram e, perdidos entre sensações de amor, de encanto, beijaram-se de modo tão romântico que a própria lua, envergonhada, pediu para que uma nuvem cobrisse sua pudicícia. A lua, ao contrário do que pensam, não é para os namorados. É para os enamorados, o que é um pouquinho diferente. De qualquer modo, não quis presenciar os esforços românticos que houve entre um centauro e uma iara. As estrelas sim, essas indiscretas, presenciaram tudo.
Infelizmente o sol raiou, e Maria Eunice retirou-se para o fundo de seu lago, onde se sentia mais prisioneira do que rainha, mais constrangida do que esfuziante. E logo Enio igualmente se foi para longe, galopando para nunca mais voltar.
Hoje Maria Eunice já envelheceu muito, e passa seus dias lembrando da noite em que Enio a tomou nos braços, e em que seus lábios a tomaram como um vendaval. Nas tardes, Maria Eunice costuma cantar, mas até seus cantos não são mais os mesmos, pois o que lhe falta em encanto sobra em saudades.
Enio cada vez mais tem crises de identidade, pois se lhe a paixão o atormenta como uma lâmina, as patas o impulsionam para cada vez mais longe, mesmo que ele assim não queira. Enquanto isso o tempo, mensageiro de todos nós, simplesmente cofia suas longas barbas, enquanto expulsa as nuvens daqui para lá e de lá para cá. HILTON BESNOS
O casamento de vinte e cinco anos acabou, por decisão de João quando uma voz feminina lhe falou, ao telefone, que sabia “das aventuras de sua mulher Beatriz”. Ora, após tanto tempo de convívio, e considerando os últimos quatro anos, ele sabia que nada mais restava das promessas e da vida amorosa com que ambos haviam iniciado a vida em comum. Mais do que romance, havia tão-só lembranças, algumas felizes, outras nem tanto e que se foram perdendo no tempo, mas não muito mais que isso. Não tinham filhos, e Beatriz sempre sofrera com isso, especialmente tendo certeza de que João, de modo velado, a responsabilizava, ela, uma “mulher seca por dentro”, como sua sogra dizia, de quando em quando, de modo tão cruel. A vida entre ambos se arrastava de maneira monocórdia, dia após dia como a rotação da Terra. Dias, invernos, primaveras, noites se passavam, enquanto ambos aceitavam tacitamente administrar o papel de casados, sem qualquer emoção ou sentido. Portanto, pouco importava ao marido que ela possuísse algum amante, de quando em quando. Afinal, ela era ainda uma mulher bastante atraente, mas entre ambos se estabelecera um triste pacto de licenciosidade. A questão que abalara João após o telefonema não demandava sentimentos, longe disso.
Durante a vida em comum, ambos haviam amealhado uma considerável carta de bens, entre os quais se incluíam créditos, uma distribuidora de medicamentos, imóveis, ações na bolsa de valores, propriedades. Era impossível, portanto, que ele não se houvesse tocado com a possibilidade de ver sua imagem degradada publicamente ou ainda de ser vítima de chantagem. Afinal, era um empresário famoso, e as relações comerciais não se comoveriam com deslizes eróticos, sempre haveria prejuízos de todas as ordens. Naquela noite decidiu que iria agir. Seu amigo Carlos E. M, em Porto Alegre já havia passado por tal situação. Na mesma noite ligou para Guarulhos e reservou uma passagem somente de ida para o sul. Lá, poderia engendrar um plano. Nos próximos dias, pouco falou com Beatriz, ficando bem mais tempo na rua do que na casa de quase quatrocentos metros quadrados.
Beatriz notou: havia silêncios e reticências quase que palpáveis, que se esvaíam ante a negativa da conversa, ante a esquiva do que falar. Na noite de quarta-feira, quando voltou à casa, após ter inutilmente tentado fazer compras em um shopping qualquer e com uma sensação intuitiva que lhe alertava os sentidos, encontrou um bilhete. ” Vou para Porto Alegre encontrar com o Carlos. Devo voltar na semana que vem”. Um bilhete seco e definitivo. As roupas que habitualmente João levava quando em viagem, não estavam no armário: dois ternos completos, dois pares de gravata, duas calças, quatro camisas sociais, duas polo, dois pares de sapato, quatro pares de meias. João adorava o número dois e seus múltiplos. Um marido previsível.
Minutos depois, Beatriz descobriu o horário do vôo e a companhia aérea. Ligou do celular para João e guardou-o na bolsa. Ainda tinha pelo menos três horas pela frente.
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Havia muitas pessoas no enterro de João; era quinze de julho e o frio havia invadido São Paulo fazia uma semana. Frio sem garoa, seco. Beatriz era a face do desconsolo: a morte do marido ocorrera justo quando estavam em uma fase tranqüila da vida, com uma situação financeira bastante sólida. Os que compareceram ao enterro admiravam intensamente o equilíbrio do casal e o patrimônio que construíram. Infelizmente, a vida era assim, injusta, talvez cruel. João tinha sido atropelado quando atravessava a Rio Branco, duas horas antes da viagem para Porto Alegre. Compareceram muitos, alguns por interesse, outros por estratégia comercial, terceiros ainda porque amigos, esses em menor número. Durante a cerimônia, a viúva se aproximou de sua prima Clara e, abraçando-a, sussurrou-lhe: “Cuidado com o que você faz, e especialmente com o que você diz”. Clara empalideceu, enquanto Beatriz se afastava. Algumas pessoas notaram o constrangimento da última, mas não quiseram aproximar-se, menos ainda indagar o que houvera.
Quatro horas depois, Beatriz voltou para casa. Deixou-se relaxar em um dos chaise longer da sala por um bom tempo, até que ingressou em um sonho um tanto quanto agitado. Ao acordar, a noite já tomara conta de tudo. Acendeu as luzes, ligou Gotan Project, selecionou Santa Maria del Buen Aire. Foi à cozinha e agradeceu à si mesma por ter dispensado os serviçais, enquanto bebia um pouco de soda com gelo. Quando a voz de Julieta Venegas invadiu o ambiente, abriu a torneira da ducha elétrica e banhou-se, antes tomando a providência de desligar todos os telefones. Finalmente estava em paz, quase feliz.
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Quando o telefone soou no apartamento 501 do prédio classe média da avenida Bastian, em Porto Alegre, Carla desligou o aparelho de som. A ligação era de algum telefone público, pelo chiado característico e pelo ruído inconfundível do trânsito. A empregada estava mais era pensando no dia seguinte, quando iria finalmente se encontrar com o Ribeiro, que a estava rondando desde há muito. “Não, o Dr. Carlos viajou, está em Tupanciretã, tratando de negócios, deve voltar na sexta-feira”, disse para a voz masculina. Dada a informação, perguntou quem estava falando, mas, fosse quem fosse, já havia desligado.
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O celular de Beatriz tocou intensamente, por várias vezes, até que João atendeu. Foi ríspido, não queria conversa. “Já disse que estou no aeroporto!’. Ía desligando quando ela avisou que a sogra tinha sofrido um atropelamento e estava internada no Sírio Libanês. “A mãe foi atropelada?” “E não está nada bem, já estou com ela aqui”. Beatriz falava nervosamente, a voz atropelando sílabas. “Inferno!” pensou João. “Está bem, estou indo”, foi o que disse. Enquanto a voz monocórdia pedia para que “os passageiros do vôo WYU 457678 com destino a Porto Alegre e escala em Florianópolis se dirigissem ao portão dois de embarque de voos domésticos”, João se encontrava, veloz, na direção do hospital. Prevendo a perda do vôo, João jogou sua maleta de executivo no banco traseiro do automóvel.
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Tudo aconteceu de modo tão lento…. João encontrando-a em frente ao hospital, ela chorando de modo incontrolável, guiando-o para próximo à calçada, ele querendo entrar para saber de sua mãe e, de repente, em um gesto absolutamente casual, meticulosamente calculado, o pé dela cria uma alavanca e o empurra com um gesto de causalidade imperceptível, de tal modo que ele desaba, pesado, em meio ao trânsito da Rua Dona Adma Jafet, para ser colhido por um Gol que trafegava em alta velocidade e que o joga com extrema violência sob a calçada, enquanto desaparece dobrando à direita na Rua Dr. Marco Antonio de Oliveira. Beatriz se agacha, põe as mãos nos bolsos do marido, recolhe seu celular, com a mão envolta em um lenço, e entra chorando e aos gritos no Hospital. O marido fora atropelado. Correm médicos, tentam reanimá-lo, trazê-lo à vida, mas nada podem fazer. O afundamento do crânio era evidente e tudo, de repente, se transformara em um mar de sangue. Se João sobrevivesse, diriam dali há tempos para Beatriz, sua vida seria vegetativa, totalmente dependente dela e de seus cuidados.
Parentes e amigos acorrem ao Sírio Libanês. Daí por diante tudo se passaria como em um sonho, até o momento em que Beatriz, finalmente afunda na cama do casal. Antes de mergulhar no sono, olha a maleta de executivo de João e diz: “Amanhã, como cuidei dele, cuidarei de você…” HILTON BESNOS
O dicionário me diz que cleptomania é uma doença psicológica, uma compulsão irrestistível que nos faz furtar objetos não valiosos sem necessidade. Não sei qual a sua opinião sobre objetos valiosos, mas normalmente eles são associados ao dinheiro, aos símbolos de poder, a ter acesso a determinados bens ou a impor a sua vontade, seja pela organização, pela violência ou pela culpa. O que está no mercado é o que há de valioso. Então eu fico por aqui, no meu comportamento errático, simplesmente colhendo almas.
Não, meu querido leitor(a), embora possa haver um certo engano, não sou a morte, sequer um Don Juan. Romântico, aquele igualmente sugava almas, mas usando a sedução, o envolvimento. Tudo efemero, contudo, tudo com data marcada para terminar. O mito passa a viver após a morte. Claro que gostaria de ser um personagem ligado aos poderes do amor, do sexo, com pitadas altas de libertinagem. Infelizmente não é o que ocorre. O tempo, embora não me afete, me devolve potes de amargor e de angústia. Sou um migrante. Sinto, menos por vaidade e mais por conveniência, não ser mais atraente. Afinal, a beleza é um ingrediente que me aproximaria mais de minhas vítimas. Nesses dias, ser belo é um distintivo social, um facilitador em um mundo narcisista. A atração, o desejo torna as almas mais dóceis, mais influenciáveis, menos resistentes.
Aprendi que o melhor é lidar com pessoas apaixonadas, em depressão, com alto sentimento de culpa, com tristezas infindáveis, com aqueles que vagam em desespero, enfim, com todos que, consciente ou inconscientemente não suportam mais viver. Tomo-lhes as almas como quem sorve um cálice de néctar. Ou de sangue. Facil e rapidamente.
Minhas súditas almas me comprazem, me servem, resgatam a minha autoridade e senhoria. São elas o meu grupo, a minha coesão, o meu exército indizível, a minha legião. Mesmo assim, há aquelas que, para serem tomadas, necessitam que mais eu me concentre; para as mesmas me reservo mais ardiloso, subreptício, esperto, perturbador. Insuflo sonhos de potência, situações confusas, aflições, temores, sentimentos de culpa infundados. E aguardo. Se não as consigo converter ajo como um ladrão experiente; se não posso furtar algo aqui, mais adiante terei minha recompensa.
A psicologia dos estudiosos me diz cleptomaníaco.
São estranhas as ciências e as sabedorias dos homens, que não reconhecem as forças mais vitais da sua psiquê. Personagens, simplesmente tateiam: descobrem um infortúnio e mais adiante uma invenção. Miram objetivos tão distantes, sabendo de antemão que não poderão sequer alcançar suas portas; de todo modo, são poucos os que são coerentes, e que se reconhecem dentro de suas fraquezas e limitações. A cada dia mais os sentidos e as conveniências se esgotam, mas eles persistem, muitos já sem alma, sem qualquer outra coisa a fazer senão desistir completamente de tudo que os cerca. Quando alguém renuncia ao que é, abandona a sua própria humanidade ou opta pelo desespero, me sinto convidado. Rastreio suas vidas com a experiência de um perito, e quanto mais aprendo sobre elas, mais as enveneno.
Sem dúvida, voltarei depois de um tempo razoável, e as suas almas já estarão clamando pela minha presença.
Tolos, pensam que os libertarei. HILTON BESNOS
Estou com a cabeça no mundo, estou vendo quantos quilômetros ainda tem na minha frente até que possa encontrar, entre outras pessoas, aquela que eu amo. Estou rodando há um bom tempo, talvez umas seis horas ou sete, parece que o tempo dilatou de uma tal forma que me tornei apenas um ponto que se move lentamente entre o que fui e o que pretendo ser. O amor me leva, o amor me guia, o amor balança o meu caminho. De quando em quando paro, descanso um pouco, mas sei até onde quero ir, embora não saiba exatamente quando vou chegar. Sou um pixel se movendo lentamente pelo computador, sou um barco meio sem rumo, me guiando pelo sol e pela lua, com um astrolábio que, no mínimo, é imperfeito.
Os ventos que me levam adiante também me obstaculizam o caminho. Eles são assim, muitas vezes contrários ao desejo. Ventos atrapalham, ventos auxiliam, enfim, são apenas naturais. Eu, não, eu não sou um ser natural, não me sinto assim porque me correm urbanidades pelas veias. Sou absolutamente contraditório.
Enquanto o vento aponta para uma direção, me comporto como o bombordo de um navio, como uma caliça em meio a uma avenida. Inapropriado, é o que eu sou. Somente o meu amor pode me resgatar, livrar-me de mim mesmo, fazer com que eu me esqueça da minha imagem, das minhas batalhas, das minhas já obtusas memórias.
Desperto em mim mesmo a fuga do meu corpo. Não sou o meu corpo, mais, sou apenas e tão-só desejo, vontade, determinação. Meu amor me guia, mas não apenas; ele me transforma talvez em alguém que eu desconheça na plenitude. O amor me resgata de mim mesmo, me faz crer mais no sol do que na escuridão, mais na justiça que na miséria, mais na luz do que no deserto. Amo o meu amor, o meu amor é minha vida, é tudo o que eu tenho. Sou obscessivo, sou primata, sou intensamente espírito e carne. Comando a mim mesmo dentro de minha loucura e de minha solidão.
Só o amor resgata, só perto dele posso, nem que seja por breves instantes, ser o que realmente penso que sou. Sou uma sombra que caminha infinitamente em torno de meu desejo. Como eu disse, e você sabe, só o amor salva!
Os camelos varavam o deserto, enquanto eu esperava por ti. Era mais ou menos assim, no deserto, com muita sede dos teus néctares que eu me (des) encontrava. Apenas me restou tua maior ausência. Um oásis, eu necessito de um mas – por favor – sem odaliscas. Minhas energias se esvaíram e tudo parece ter perdido o sentido. Sei que não voltarás, te foste e isso é um fato que não posso discutir ou alterar, e, se algo ficou foi o desejo de compartilhar-me contigo, redescobrir talvez algum clarão de lua, mesmo um poema subitamente surgido do teu olhar.
Se as memórias são uma idealização do que vivemos, mesmo o que vivemos se perde entre nossos desejos. Ilusões, as memórias são ilusões que manipulamos de acordo com nossas vontades. O presente é tua partida, o presente é a tua presença enevoada em alguma paragem, em alguma estrada, em algum caminho incerto. Não havia certeza, mas meu desejo, sempre ele, traiu mais uma vez meu entendimento.
Estou embotado pelas minhas recordações, pelos meus sentidos que mais uma vez se entregaram aos sentimentos. Sou, eu mesmo, uma ilusão. Um fractal. Uma semana que se esgota rapidamente, um evento. Sou um evento, com horário marcado, com sorrisos calculados, com reticências expulsas. Talvez por isso me engane tanto, embora também haja uma parte de mim que às custas da sedução, aos outros encanta. Novamente aqui, aguardando, espreitando qualquer um, qualquer uma que me diga algo gratificante, que me tome nos braços, que reinicie o signo da envolvente paixão.
A tua ausência não permite que eu exerça sequer as minhas desconfianças. Não estás aqui, partilhar o que com quem? Ser visto por quem? Ser amado por quem? Se não posso dar-me a mim mesmo, a quem devo me submeter para triunfar sobre minhas idiossincrasias? Um oásis…, por favor, você viu algum? Necessito de ti para que digas quem eu sou, o que sou, pois não posso conviver com o meu passado, vazio de um tudo como um copo que insiste em transbordar de fel. Não virás, contudo, és apenas memória, e não quero chorar por ti, pois seria chorar pela minha própria solidão. HILTON BESNOS
DELE PARA ELA
Montevidéu, 14 de julyo de 2005.
Guardarás contigo bem mais do que minha raiva momentânea, fugaz como um beijo apaixonado. Não, repito, nada de sentidos vãos, que se apagam e se perdem com os ventos ou ficam jogados nos desvãos da memória. Mais, bem mais que isso, meu ódio é como uma tempestade de chumbo, uma pústula que se rompeu, espelhando seu cheiro adocicado de veneno. Terminarás teus dias por minhas mãos ou pagarei para que alguém o faça, embora prefira, por ora, dar cabo de ti pessoalmente, sentir a fruição do prazer que terei. Tenho meios, dinheiro e poder para fazê-lo.
Antes, porém, providenciarei para que sintas os rigores da miséria e os aguilhões da fome, até que, solitária, sem recursos, rastejes como um desses infamantes insetos cegos e pegajosos, a quem esmagamos por um toma-lá-dá-cá. A solidão te cobrirá como uma capa, e as sombras serão tuas companhias, teus pais, teus amantes e confidentes. Somente então decidirei em que circunstâncias se dará a tua morte, quando, ao desamparo, implorares pelo minuto final, só a partir daí minha lança te alcançará, para tua derradeira agonia, até que te tornes nada mais do que uma lembrança desfocada, um desses filmes antigos, dos quais a poeira do tempo se encarregou lentamente de destruir. Não me é possível esquecer o que fizestes, porque fizestes e o mar de iniquidades onde me afoguei. Somente a tua morte, o teu desaparecimento físico será suficiente para queimar, como se fosse um incenso as lembranças com as quais envenenasses minha vida. Assim, pulsa em mim uma única vontade, que é a de ver teu final.
Não te amasse tanto, hoje mesmo seria teu último dia entre os vivos.
DELA PARA ELE
Belo Horizonte, 1 de agosto de 2005.
Se me matas, assassino cruel, igualmente morres; haverá em ti um vazio de eterna cegueira, serás um hemiplégico, corpo cansado e paralisado a quem se arrancou a alma, a luz da virtude, o facho da humanidade. Teus sonhos serão um labirinto de pesadelos mergulhados em uma noite sem fim, uma desesperança sem nome. Se me matares, matas em ti o parco de beleza que te mostrei e te trouxe à vida, pois foi através de mim que te tornastes homem, que te sufocastes de prazer. Assim, a escolha é tua, e sei que nada posso para impedir a tua sanha.
Decide pois e toma a minha morte em tuas mãos, pois meu sangue te acompanhará até teus últimos dias. Não desdenhas da tua truculência, mas te concedas a dúvida da sanidade, a irrequieta vontade dos que desejam. Não negocio afetos, sabes disso desde que pusestes tuas mãos em meus seios e me tomaste como femea. Meus amores não são para mercancias. Anda, mata-me agora, que já te saciastes em minha cama, deixando que teu corpo se afogasse em mim; esquece isso tudo e executa teu ritual de morte. Sei que não me adianta tentar a fuga, não tenho como fazê-lo e não há um só lugar onde possa me esconder sem que algum dos teus enviados consiga me localizar e te dizer onde estou. Liquida de imediato com isso, porque o meu desprezo cada vez mais toma corpo em relação a ti, aos teus gestos de covarde. Anda, menininho mimado, desbragado em poder e amante das ordens, das disputas, faça o que tens de fazer.
Condenes meu corpo, porque minha alma jamais foi tua, liberta-me da prisão da carne, das vísceras, do desejo, do sangue, porque minha alma, leve e fugaz, já principia, em tudo, o seu vôo.
Há tempos que eu queria tatuar-me e, pensando se deveria ou não fazê-lo, refleti nas inesperadas conseqüências de se falar com a pele. Porque tatuar é falar, não é?Não tenho com quem conversar, mas uma tatuagem poderia dizer o quanto me sinto sozinho. Penso… será que eu e minha tatuagem conversaremos? Essas cicatrizes não me deixarão ainda mais só? Não freqüento a mídia, nem as galerias de arte; não sou político, nem jogador de futebol, portanto, esse desejo não é umnenhum golpe publicitário. Minha decisão de tatuar-me reside apenas na vontade de não afastar, nem que seja por um pouco, a solidão na qual estou prisioneiro.
Sou um homem que, amadurecido,já viveu o bastante para saber que o tempo não apenas devora tudo, mas, especialmente, vai apagando algumas memórias que me são muito caras. Sinto que progressivamente minhas recordações me abandonam, como me abandonaram os filhos, um a um.
Cada um deles possui suas razões, cada um deles também tem sua família. Os netos, igualmente, pouco me vêem. É claro que nas datas festivas fazem o possível para olhar o pai, o avô, e homenageá-lo, cada um de seu modo. Quando as festas se vão, igualmente eles partem, como o movimento contínuo das marés; eu fico aqui, imerso em meus pensamentos que também, a cada dia, mais se ausentam das minhas percepções.
Continuo elegendo um espaço de tempo para a leitura, pois até mesmo o computador, que manejava com uma certa destreza, atualmente me enfada. Minha velha paixão pelos livros retornou há cinco, seis anos… Prefiro sentir o cheiro das capas e de suas folhas do que a da luz infinitamente gélida de um monitor. Os livros me devolvem algumas de minhas memórias, me mostram que ainda estou vivo. Mas afinal, quando se está só, está-se realmente vivo?
Aposentei-me há muitos anos. Minha amada se foi antes de mim e dela são as minhas recordações mais prementes. O seu cheiro, suas risadas e mesmo seus amuos. Construímos uma história tecida de sonhos, de belezas entremeadas aqui e ali de alguns desapontamentos e mesmo de desilusões. Quando, à noite, mergulho em meus sonos breves e entrecortados, seu rosto e seu sorriso é o que mais vem se juntar a mim. A morte que levou-a e acabou com minha paz fez-me intuir que deveria preparar-me para encontrá-la. No entanto, passaram-se anos e nada mais tenho a reconstruir, senão a sua ausência. Quando as noites caem, muitas vezes apanho meu carro(ainda dirijo, posso garantir) e circulo sem rumo pela cidade. Todos me alertam quanto aos riscos que corro, mas, de certo tempo para cá, não sei se faria tanto mal ser surpreendido por algum perigo…
Numa noite dessas, sentei-me diante da tela fria de um computador. Num desses sítios de busca, lancei de pronto “tatuagem”, o verbete “tatuagem”. Há sete anos esse verbete me persegue e me assombra. Digo, também, que há sete anos esse verbete me instiga a escrever no corpo, um nome. Muito calmamente pensei, arquitetei, escolhi a melhor pele do meu corpo cansado.Tatuar-me? Há alguns meses, na Cultura, deparei-me com um capa vermelha de um livro que me parecia convidativo. O corpo em performance… Resolvi me tatuar. Inscrever o nome de minha amada sobre meu corpo de modo que jamais pudesse esquecer. A cada vez que lesse o que em minha carne ficaria gravado, retornariam as memórias, os beijos, as pequenas rusgas, e , com o recordar viriam, também, a infância dos filhos, os momentos que me orientaram como pai, os pequenos movimentos que fazemos diuturnamente e que são devorados com o romper dos anos. Viveria tudo de novo.
“Tatoo Press”, what that means? pensei eu quando entrei no ambiente acanhado, mas imensamente iluminado, onde exibiam-se desenhos e alguns posteres improváveis na parede. Imprensa tatuada? Não sei precisar se estava correta a minha literal tradução do inglês. Uma bela moça veio me atender, certamente, pelo sorriso, entendi que ela pensava que, inadvertidamente, eu havia entrado na porta errada… “Não”, eu disse “eu quero tatuar a minha pele.” O espanto traduziu-se, em princípio, por um alçar de sombrancelhas, que emolduravam belos olhos castanhos. “Sim, quero fazer uma tatuagem, enfim, saber os detalhes, o que é necessário, quanto custa, etc”.
Dias depois eu tinha uma inscrição no meu antebraço. Mandei fazer um coração, como uma moldura. Dentro, o nome da minha amada e, abaixo do conjunto, emoldurado por uma lua azulada, o nome de dois locais de minha intensa recordação afetiva. Se senti dor? Claro que sim! Mas, de certa maneira, a dor é uma amiga que á me acompanha pela vida… mais próxima nos últimos anos.
Imagino, entre curioso e divertido, o que meus filhos e meus amigos irão dizer quando testemunharem a minha morte, quando enfim eu me for, e, só nesse momento, poderem ver minha tatuagem. Não contei para ninguém que me tatuei e guardo, comigo, como um mapa do tesouro, as pequenas cicatrizes coloridas na minha pele. Um derradeiro segredo, uma fonte de volúpia. Apenas quando me banho revelo para mim mesmo as marcas que mandei fazer em meu corpo. Converso de vez em quando com essas inscrições como se fossem uma amiga cálida, como se elas sempre tivessem estado ali.
De certo modo, a conversa com minhas tatuagens mantém minha mente ativa, porque na escuta… É um espelho que me recorda, ainda, o que de melhor em minha vida eu experimentei e disso eu posso contar. Dia desses, calor abrasivo, voltei à Cultura e procurei o livro que me deu a idéia da tatuagem. Lá estava o artigo na página 97, “Tatuagens e cicatrizes: performances narrativas na contemporaneidade”. A autora, das terras distantes de Minas, Lyslei, Lyslei Nascimento, nascimento… Que nome estranho para se ter em Minas… Em casa, com o livro a minha cabeceira, adormeci e parece que não sonhei… Quando o dia nasceu, demorei-me ainda a contemplar o pequeno livro vermelho e, junto a ele, minha inconcebível inscrição. Após tantos anos, nunca me sentira tão bem
NO MUNDO HAVIA QUATRO PADRÕES DE TRIBOS, todas coloridas: as dos amarelos, as dos brancos, as dos vermelhos, as dos negros, de tal modo que elas se distribuíam muito distantes umas das outras, o que justificava um certo espanto quando amarelos encontrassem brancos, brancos encontrassem vermelhos, negros encontrassem brancos, amarelos encontrassem…. e assim por diante.
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