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19
Ago15

Ars Moriendi

por Hilton Besnos

Paragem

De quando em quando, desde sempre, penso em como morremos, no quanto nos são dificultadas as ações que possibilitam a cada um de nós morrer em paz. Penso, aqui, em uma maneira de morrer que está além (ou aquém) do imponderável, ou seja, não na morte súbita causada por uma doença, por um acidente ou por um crime fatais, por exemplo. No passado, enxerguei no suicídio uma alternativa satisfatória, mas hoje entendo que ele não corresponde a um modo de morrer em paz. O suicídio implica em uma deliberação clara quanto ao quando morrer, mas o ato suicida quase sempre coincide com procedimentos que dificilmente têm conotações apaziguantes. Com frequência, a cena do suicídio é dramática e, sobretudo, é tão feia quanto qualquer outra cena de morte. Quando penso em morrer em paz, penso em uma maneira de morrer que seja bela, em uma deliberação clara no sentido da beleza do morrer. Não penso, aqui, no morrer como figura de linguagem ou como abstração, mas no morrer em si, em alguém que morre, em cada um de nós que morre. Penso na necessidade de beleza no morrer da carne. A morte é inevitável e o que é inevitável não é feio nem belo. Penso, ao contrário, no que é evitável no que concerne àquele morrer que contém mais ou menos vagar: penso que a feiura é, muitas vezes, evitável e que, nestes casos, a beleza deve ser inevitável. Penso, enfim, que a construção de uma cultura que acalente o ato de decidir sobre como morremos —a arte de morrer—, é um passo no sentido da deliberação da beleza e, virtualmente, da nossa reconciliação com o fato de que morremos.

Veredas

Vilém Flusser

O escritor Vilém Flusser sugere, em seu livro de 1983, “Pós-História”, que “se aprendermos tal arte suprema, ars moriendi, o terror da atualidade virará aventura, experiência do belo”. Embora ele escreva sobre o mundo em geral que aterroriza e, de certa forma, empregue o termo ars moriendi significando algo ligeiramente distinto dos textos do século XV —que consistiam, grosso modo, em recomendações para uma boa morte de acordo o cristianismo da época—, penso que as suas palavras são úteis no sentido de incorporar o morrer como uma experiência do belo. Ars Moriendi, a arte de morrer, segundo Flusser, consiste em “descobrir a beleza no terror do evento”. Dominar esta arte requer aprender a amar a morte, “amar o futuro que não é mais nosso”. Sem este aprendizado não se pode pensar em uma maneira de morrer que seja bela. Sem reconhecer amorosamente a morte somente podemos aceitar como fatalidade toda a feiura que anuncia a hora de morrer. Dominar a arte de morrer é o esforço de trazer a morte para o nosso domínio, é encarná-la. Se formos capazes de amar a substância da morte encarnada em nós, abrimos a possibilidade para que o verbo morrer seja conjugado fora do domínio do verbo sofrer. Morrer, assim, pode ser uma experiência imediata, isto é, que não necessariamente deve passar pelas mídias do sofrimento, da dor e da decadência, ou seja, que dispensa e repele o intermediário da feiura.

Dizemos que a nossa morte é a única certeza que podemos ter e que tudo mais é incerto. Ou, como também escreveu Flusser, no artigo “O Tema Exclusivo”, na década de 1960, “O homem, como ser pensante, é com efeito o único ser vivo que sabe da morte. O saber da morte me parece ser o traço distintivo do homem”. Isto mostra que não levamos a sério justamente o que sabemos com certeza e que nos esforçamos em transformar em certeza aquilo que certamente não sabemos, ainda que jamais o façamos com sucesso.  Mas não há leviandade neste esforço sempre frustrado, pois, como bem observa Flusser, “A morte admite somente duas atitudes: negá-la e continuar representando, ou aceitá-la e cair no mutismo”. O que não conseguimos fazer é justamente cair no mutismo e, neste sentido, a própria ars moriendi, a arte de morrer, é essencialmente uma maneira de negar a morte. Não é difícil entender a razão disto, já que a arte está intimamente relacionada à noção de criação. Quando penso em deliberar no sentido da beleza na morte, penso sobretudo na criatividade ao morrer, ou seja, penso em usar a certeza e o saber da morte a favor da beleza. Há um absurdo nesta deliberação que faz da ars moriendi algo pouco sério, mas, afinal, como escreveu Rainer Maria Rilke, “A morte é grande. Nós somos os seus de boca ridente”.

No livro “Vampyrotheutis infernalis”, composto em 1987 por Vilém Flusser em parceria com o biólogo Louis Bec, podemos ler que “só podemos saber o que sabemos fazer”. Então, se sabemos da morte é porque sabemos morrer, dominamos a ars moriendi. Arte, segundo Flusser, “é o gesto pelo qual o homem imprime sua vivência sobre o objeto de sua vocação, a fim de realizar-se nele, imortalizar-se nele”. Praticam a arte de morrer os que atendem ao chamado da morte no sentido de informá-la, de imprimir sua vivência nela, de realizar-se nela, de imortalizar-se nela, e que, neste processo, são também modificados por ela. Como somos todos chamados pela morte, somos todos praticantes da arte de morrer. É neste sentido que a ars moriendi é uma arte suprema. Também é neste mesmo sentido que a arte de morrer é habitual, pois estamos habituados à morte. Mas é um hábito que não cultivamos, que, sempre que podemos, preferimos deixar para depois, e que, por isto, persiste sendo assombrado pela feiura. Em outros termos, sabemos da morte e sabemos morrer, mas acabamos quase sempre morrendo mal e em meio à feiura. De tanto protelarmos e adiarmos a prática da ars moriendi, ficamos literalmente sem tempo para fazer o difícil e necessário salto do feio para o belo no que se refere ao morrer.

Tatsumi Hijikata

Em seu livro “Retratos Japoneses: Crônicas da vida pública e privada”, o crítico de cinema, cineasta e escritor norte-americano radicado no Japão Donald Richie assim se lembra de Tatsumi Hijikata: “mal entrado nos trinta, quando teria apenas mais trinta pela frente e já pensava na morte, procurava por ela, incorporando-a em suas obras”. Não é tarefa simples apresentar o japonês Hijikata (1928-1986), mas Richie, seu amigo por décadas, mostra o inventor do projeto chamado Ankoku Butoh como um homem comum e até engraçado. Ankoku Butoh tem sido traduzido como Dança das Trevas(ankoku=trevas; butoh=dança). Prefiro traduzir como Não-Dança porque parece refletir melhor o objetivo de persistente negação de Hijikata e, também, pelo fato de ser um projeto que, por uma ou outra razão, nem sempre esteve relacionado estritamente à dança. Mas vou usar, aqui, os termos butô de Hijikata e dança de Hijikata que sinto como sendo ensaios ou práticas da ars moriendi, ou seja, da arte que tem como matéria a morte, da arte de informá-la.

“O primeiro movimento é a morte”, escreve Stephen Barber no livro “Hijikata: Revolt of the Body”, de 2006. Mas como seria este movimento? Donald Richie relata um gesto de Hijikata: “Veja, disse certa vez, caindo gradualmente, com os joelhos se aproximando do peito, braços cruzados, punhos torcidos, dedos abertos: É como morrer”. É um gesto muito peculiar de Hijikata que pode ser visto, com inúmeras variações, nos documentos que retratam a sua dança. Este gesto aparece até mesmo nos filmes comerciais em que atuou, como “Horrors of  Malformed Men” (1969) e “Blind Woman’s Curse” (1970), ambos dirigidos por Teruo Ishii. Como salienta Richie, estes gestos “não eram dramatizados, apenas estavam ali. Não era algo para a dança expressar, mas para o corpo mostrar”. É um gesto que simplesmente estava no corpo de Hijikata e ele o mostrava como uma manifestação de suas palavras: “Eu gostaria de ter dentro do meu corpo uma pessoa que já tenha morrido e que siga morrendo repetidas vezes”. Era a repetição de sua ars moriendi em atuações diversas, mas sobretudo em fotografias e filmes que eram, outornaram-se, espaços privilegiados da sua dança.

Em seu pequeno texto apresentando Hijikata, Donald Richie descreve o contexto em que se encontra: um evento acadêmico organizado em homenagem ao inventor do Ankoku Butoh. Não é difícil sentir no seu texto uma ponta de desprezo sorridente pelo que teriam dito, pois Richie não relata o que disseram, os acadêmicos naquele evento. O mesmo tom, ainda que mais difuso e diluído, aparece no livro de Stephen Barber.  Sinto que tanto Richie quanto Barber buscam, sobretudo, tornar sensível a presença de Hijikata, o seu próprio corpo e o que eu chamo (talvez incorretamente, o que não me preocupa) de sua ars moriendi. Nenhum dos dois imobiliza e disseca Hijikata por meio de instrumentos cirúrgicos de análise. Desta forma, ambos possibilitam que os seus respectivos hijikatas morram e continuem morrendo repetidas vezes dentro de seus textos e, talvez, de seus próprios corpos. Através dos textos de Richie e Barber, tenho a chance de também sentir Hijikata morrendo e continuar morrendo repetidas vezes dentro de mim. Vejo e revejo as fotografias e os filmes que retratam Hijikata em busca deste mesmo sentimento. Li, sim, alguns textos mais analíticos e outros acadêmicos, mas eles mostraram ter um enorme defeito: eles não deixam Hijikata morrer e seguir morrendo em mim.

Roland Barthes

Em seu último livro, “A Câmara Clara”, de 1980, Roland Barthes escreve que a fotografia representa “esse momento muito sutil em que, para dizer a verdade, não sou nem um sujeito nem um objeto, mas antes um sujeito que se sente tornar-se objeto: vivo então uma micro experiência da morte (do parêntese): torno me verdadeiramente espectro”. De algum modo, talvez oblíquo, a fotografia relaciona-se com a ars moriendi.  Mas como? Barthes sugere que “é preciso que a morte, em uma sociedade, esteja em algum lugar; se não está mais (ou está menos) no religioso, deve estar em outra parte: talvez nessa imagem que produz a Morte ao querer conservar a vida”. A julgar pela proliferação da fotografia no mundo atual, é possível deduzir que a morte está por toda parte, que todos posamos para morrer o tempo todo e, principalmente, que morremosde forma chã nas gavetas, nas cestas de lixo ou na vacuidade dos dispositivos de comunicação digitais. O que mais perturba Barthes é o fato da fotografia ser umcertificado de presença, uma prova irrefutável, e, consequentemente, também umatestado de óbito. O que me perturba é que nos preocupamos obsessivamente com a suposta boniteza das  poses que visam certificar a nossa presença, mas continuamos aparecendo de forma desajeitada e feia nos nossos atestados de óbito.

A professora Leyla Perrone-Moisés observa em seu pequeno livro “Roland Barthes: O Saber com Sabor”, de 1983, que “como a anunciar sua morte próxima, em A Câmara Clara o corpo de Barthes já se desprende de seu texto, deixando neste, a silhueta evanescente”. Barthes morreu em 1980, poucos meses após a publicação de “A Câmara Clara”. A qualidade espectral do livro faz dele uma espécie de auto-retrato de Barthes em fotografia, ou seja, uma experiência da morte como ele próprio a definiu. A escritora Susan Sontag observa em seu livro “Sob o Signo de Saturno”, de 1980, que Barthes “era particularmente sensível ao fascínio exercido pela penetrante notação que é a fotografia. Das fotos que escolheu para Roland Barthes por Roland Barthes [1975], a mais tocante, talvez, mostra uma criança bastante desenvolvida, Barthes aos dez anos, carregada, agarrada à jovem mãe (ele a intitulou A Demanda do Amor)”. Olho, agora, para esta foto e leio no texto que o acompanha: “a fotografia de juventude é, ao mesmo tempo, muito indiscreta (é meu corpo de baixo que nela se dá a ler) e muito discreta (não é de ‘mim’ que ela fala)”.

No prefácio de seu livro “Sade, Fourier, Loyola”, de 1971, Barthes escreve que “o autor que vem do seu texto e vai para dentro da nossa vida não tem unidade; é um simples plural de ‘encantos’, o lugar de alguns pormenores tênues, fonte, entretanto, de vivos lampejos romanescos, um canto descontínuo de amabilidades, em que lemos apesar de tudo a morte com muito mais certeza que na epopeia de um destino; não é uma pessoa (civil ou moral), é um corpo”. O morto, a morte e o morrer que vêm para dentro de nossas vidas como um plural de encantos e um canto descontínuo de amabilidades sugerem, para mim, uma realização possível da beleza na ars moriendi. O autor vem do seu texto para dentro de nós como fragmentos ou, segundo Barthes, como átomos epicuristas ou, ainda com Barthes, como revoada cintilante de puncta — coletivo depunctum: “o punctum de uma foto é esse acaso que, nela, me punge (mas também me mortifica, me fere)”.

O Chá

“No fim da sua vida, (…) minha mãe estava fraca, muito fraca. Eu vivia em sua fraqueza (era-me impossível participar de um mundo de força, sair à noite, toda mundanidade me causava horror). Durante sua doença, eu cuidava dela, estendia-lhe a tigela de chá de que ela gostava, porque nela podia beber de maneira mais cômoda do que em uma xícara (…)”, lembra Roland Barthes em “A Câmara Clara”. No quarto daquele apartamento em Paris, no final da década de 1970, esta cerimônia do chá plena de verdade. Segundo a professora Madalena Hashimoto, em seu livro  “Pintura e Escritura do Mundo Flutuante”, de 2002, “na cerimônia do chá, o chá é mais um coadjuvante neste universo que almeja, através do exercício de cada movimento, chegar à perfeição do esquecimento de si, do se por a serviço do homenageado”. Perfeitamente esquecido de si, Barthes era um mestre do chá autêntico, um verdadeiro retirado-do-mundo. Hashimoto explica que “na cerimônia do chá, chanoyu, o retiro-do-mundo toma forma como ritual, como possibilidade diária de contato com um outro mundo”. Que outro mundo seria este? Barthes, afinal, havia se retirado para qual mundo?

Kakuzo Okakura (Tenshin), em seu “O Livro do Chá”, de 1906, escreve que a morada do chá é “uma estrutura efêmera, construída para abrigar um impulso poético”; Hashimoto a define como o “palco de um outro mundo”. No apartamento parisiense convertido em palco de outro mundo, Barthes dava vazão aos seus impulsos poéticos: cuidar de sua mãe (poesia da cogitação); fazer da fraqueza da mãe a sua própria, tornar-se ela (poesia da alteridade); sofrer a doença da mãe (poesia da dolência); recolher-se (poesia da clausura); abdicar da força (poesia da propensão). Dedicava-se integralmente à ars moriendi em sua morada do chá. De acordo com certas linhagens filosóficas do chá, adentrá-la equivale a uma passagem para outro mundo, o que, de um ponto de vista da ars moriendi, é o mesmo que morrer. Na casa de chá construída pelo mestre do chá Sen No Rikyu (1522-1591), por exemplo, entra-se através de uma porta estreita e baixa (nijiriguchi) em que os convivas são forçados a curvar-se e a arrastar-se (além de deixar qualquer tipo de armamento do lado de fora) rumo ao seu interior. Este modo de acesso ao palco do outro mundo é significativa, pois à época de Rikyu havia aqueles que não eram obrigados a curvar-se para ninguém e os que viviam curvados. De acordo com o texto de Barthes em “O Império dos Signos”, de 1970, pode-se entender esta curvatura graficamente, como a escrita da forma vazia. Para entrar na casa de chá de Rikyu é necessário esvaziar-se, tornar-se vacuidade. Em outros termos, é preciso morrer para habitá-la.

No livro “The Unknown Craftsman”, composto de artigos escritos por Sōetsu Yanagi entre 1927 e 1954 compilados e traduzidos pelo ceramista Bernard Leach, pode-se ler que “O Chá é uma religião da beleza”. Yanagi insiste no fato de que tudo aquilo que perfaz a cerimônia do chá, que ele prefere chamar mais apropriadamente de Chanoyu, ou O Caminho do Chá, foi inventado pelos mestres do chá, como Rikyu. Antes dos mestres do chá, não havia utensílios do chá, não havia o aposento do chá, não havia o caminho do chá: eles inventaram tudo isto e, principalmente, abriram o caminho do chá. É neste sentido que, conforme Yanagi, o Chá pode ser entendido como uma religião da beleza. Em outros termos, “religião e arte são disciplinas criadoras de língua”, como escreve Vilém Flusser em seu livro “Língua e Realidade”, de 1963. Os mestres do chá criaram uma língua nova que vem se propagando até os dias de hoje. Uma língua complexa que Yanagi alerta não ser “brincadeira infantil”, pois que demanda grande esforço. O nosso cotidiano prova que seguir ou abrir um Caminho do Chá rumo à Iluminação e à Beleza, ou seja, morrer belamente ao longo deste trajeto, não é opção da maioria, que, aliás, acaba morrendo em meio à feiura dos atalhos e becos sem saída. A ars moriendi é uma língua em desuso, inatual, fora de moda: é uma arte extemporânea. AKIRA UMEDA

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16
Ago15

Respeito ao professor

por Hilton Besnos

 

“Respeito ao professor” é uma frase que vem se tornando mais e mais uma reivindicação, sintoma de que o professor tem sido desrespeitado. Sou professor, embora não atue no ensino formal e oficial há quase duas décadas, e busco cumprir uma lei básica, oficial e do senso-comum, que informa que o ser humano e seu trabalho devem ser respeitados; que mesmo o não-humano e o não-trabalho devem ser respeitados. Ao contrário do que a mera repetição de slogans e a incessante proliferação de mensagens eletrônicas nas redes sociais da telecomunicação fazem parecer, não se trata de tarefa fácil nem simples. Desrespeitar, seja lá o que for, é mais comum que respeitar. Uma sensibilidade menos otimista diria que, pela sua repetição sistemática e automática, desrespeitar é que é uma lei básica; que nem sequer percebemos o quanto somos desrespeitosos.Sobre o professor pesa um desrepeito menos inocente, menos casual, a julgar pela intensidade das reivindicações que vejo e ouço por toda parte. De modo geral, são as condições de trabalho do professor, entendidas em sua dimensão mais vasta, que são desrespeitosas. Imagino que este problema esteja sendo abordado por vários pesquisadores e especialistas e que, ao contrário, o resultado das pesquisas e as recomendações especializadas não estejam sendo recebidas, discutidas, encaminhadas e implementadas, seja no ensino oficial, público, ou no ensino privado. Sei que, em boa medida, a própria legislação federal não é cumprida com rigor e, portanto, não se manifesta como realidade no sistema educacional.Eu não tenho uma solução para este problema, que, aparentemente, requer esforços hercúleos de toda parte e de toda sorte. Apenas reafirmo que cumprir leis básicas é tarefa árdua no contexto brasileiro, o que inclui o respeito ao professor. Ao escrever isto, não pretendo subestimar e diminuir a gravidade do problema que é o desrespeito ao professor. Mas é forçoso reconhecer que os desafios propostos pela educação de todos, pela educação das massas, que é uma meta relativamente recente no Brasil (considerando-se a primeira versão da Lei de Diretrizes e Bases de 1961), não têm sido vencidos satisfatoriamente. Nestes últimos 50 anos, mudanças profundas vêm alterando a forma do mundo, alterações que este complexo tecnológico-humano que chamamos de Educação vem desdenhando sistematicamente. Evidentemente, até certo ponto é possível seguir as velhas trilhas em velhas tropas sob o conforto de certa inércia (seja no âmbito das políticas públicas de educação, seja no âmbito da precária imaginação da iniciativa privada quando o assunto é Escola). Só não sei dizer até quando, pois alguma hora, eventualmente, as velhas trilhas darão em abismos que já, hoje, desenham-se claros.

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16
Ago15

Desinterecisses

por Hilton Besnos

Existem consensos, todos muito disseminados e demograficamente adensados, em torno dos significados e das manifestações das palavras “cultura” e “arte” e nenhum deles me interessa. Isto quer dizer que não tenho a menor motivação para escrever sobre estes consensos, estes dogmas, estes impensados, estes automatismos, estas inércias. Mas como tenho sentido que eles têm me assediado cada vez mais, que eles têm estado cada vez mais presentes onde eles deveriam estar ausentes, que seus portadores e propagadores querem a minha adesão, creio que vale a pena jogar fora umas poucas linhas de texto para descrever de forma incisiva e sucinta alguns destes consensos empedernidos.

Direto ao ponto. É desinteressante a convicção que faz com que alguém (de uma instituição cultural ou do poder público de uma cidade de médio ou grande porte) veja ou vá para um lugar que não é o seu habitual (habitual para alguém que atua em uma instituição cultural ou junto ao poder público de uma cidade de médio ou grande porte) buscando identificar “cultura” e “arte” e é capaz de lá encontrar apenas um menino com grande aptidão para o balé clássico e uma menina com um excepcional talento para tocar classicamente o violino. E nada mais. Pode-se argumentar em outra direção (sou insensível a esta argumentação), mas esta convicção expõe uma certeza do que é “cultura” e “arte” em sua dimensão ideológica e técnica mais conservadora. Não me dirijo contra o conservadorismo e a conservação. Apenas me desinteresso por esta convicção.

Também é desinteressante o hábito de as famílias (e as instituições correlatas) empenharem-se em inscrever sua prole em escolas de balé clássico e de música clássica. Hoje em dia é cada vez mais rara a perseguição do ideal romântico do casamento, do matrimônio, da busca pelo príncipe encantado ou pela princesa prendada, porque passou-se a perseguir o ideal igualmente romântico de formar descendências de bailarinos ou músicos. Este empenho das famílias e das instituições correlatas é o empenho da conservação ideológica e técnica de valores que não me interessam. Não me dirijo contra o conservadorismo e a conservação. Apenas me desinteresso por este empenho.

Apenas isto. 23-11-2013 AKIRA UMEDA

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15
Ago15

O grande cubo branco

por Hilton Besnos

 

Existem diversas opiniões sobre a cidade de São José dos Campos SP, pois é virtualmente impossível que haja apenas uma. O fato dela ser como éestar como estácontinuar sendo e estando no sentido em que ela vem sendo mantida não indica uma unanimidade. Quando muito, indica uma aquiescência, uma conformidade, uma aceitação silenciosa resultante da impotência ou do desconhecimento de outros modelos de ser e estar da cidade. A preocupação com este assunto, é forçoso reconhecer, não está entre as mais vívidas e ativas entre os citadinos. E a cidade segue firme em seu projeto de ser e estar, um projeto que, como se pode deduzir, não é construído coletivamente, não é cidadão. A questão é complicada por inúmeras razões e fatores, que este texto não irá analisar, mas a São José dos Campos tal como ela vem sendo e estando mostra mesmo este esvaziamento, esta anulação da presença humana: não é preciso sequer ter olhos saudáveis para perceber isto. É como se a falta de participação política, acima notada, por uma ironia assombrosa e esclarecedora, aparecesse sem querer na aparência da cidade. São José dos Campos é uma cidade em que se pode ver claramente a vontade de seus  poucos desenhadores em contraposição às multidões desertadas e às paisagens secas de almas. Por alguma razão, esta cidade é a manifestação da tecnologia estética do Cubo Branco, o ideal modernista da galeria construída para acomodar objetos de Arte com base nos conceitos de isolamento e de anulação do mundo exterior e das realidades não-Artísticas. Etimologicamente, o termo Arte significa o mesmo que Tecnologia. São José dos Campos, conhecida como “Capital da Tecnologia”, é uma cidade construída para que a Tecnologia apareça e seja vista como Verdade Absoluta e sem interferências que informem o contrário. Esta cidade é um gigantesco Cubo Branco dedicado à Tecnologia (à Arte) em que a presença física e viva de cidadãos e citadinos só faz atrapalhar.São José dos Campos, neste sentido, vem realizando um estranho conceito de cidade pura, ou seja, que se purifica de seus citadinos e cidadãos. É um projeto que, muito paradoxalmente, visa livrar-se da quase totalidade de seus habitantes, fazê-los sumir ou, pelo menos, recolhê-los à sua insignificância e invisibilidade. A poética deste projeto (de Arte, da arte de governar) engloba diversas referências do passado, mas não vale a pena recuperá-las já que são por demais conhecidas.Akira Umeda, 19 de março de 2013. AKIRA UMEDA

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15
Ago15

O código de Caminha

por Hilton Besnos
Aprendemos ou ouvimos falar, nas aulas de História, que Pero Vaz de Caminha escreveu uma carta ao rei de Portugal D. Manuel, mais de 500 anos atrás, comunicando um fato extraordinário. Ainda mais fantástico é o fato de que raramente nos conscientizamos de que o Brasil, pelo ato de Pero Vaz de Caminha, tem uma certidão de nascimento, assinada, datada, localizada e reconhecida. Este ato prodigioso corresponde a uma espécie de big bang da cultura brasileira, e os fragmentos da escritura de Caminha estão inscritos em praticamente todos os corpos, textos, sons, imagens, relações e eventos que aqui estão e surgem —embora nem sempre isto esteja claro, do mesmo modo que raramente visualizamos uma pessoa como um mapa genético. O que torna estrondosamente incrível o fato de que, hoje, em todo o mundo, os testes genealógicos de DNA sejam, realmente, documentos comprobatórios que garantem direitos.O código de Caminha se manifesta de formas muito variadas, mas uma delas é particularmente marcante: a forma oficial. Esta forma busca repetir o ato primordial de Caminha, ou seja, escrever uma carta ao rei. Um ato simples, prosaico, ridículo até, mas que tem uma extensão assombrosa. Não há exagero em afirmar queperde-se o sentido de viver na cultura brasileira se não se escreve uma carta ao rei. Dar sentido à vida é dar forma oficial aos nossos corpos, textos, sons, imagens, relações e eventos —ou seja, dar-lhes uma certidão de nascimento assinada, datada, localizada e reconhecida. “Coisas” sem forma oficial são “coisas” sem sentido e, aqui, fontes de sofrimento.Os versos “I’m very superficial / Ihateanything official” (“Sou muito superficial / Odeio tudo que é oficial”) da canção “Private Life”, deChrissieHynde, configuram um exemplo de atitude muito impopular no Brasil, um jeito de ser que não lança raízes. Estes versos, também cantados porGraceJones, desprezam o ato de escrever ao rei e afirmam o prazer de viver sem o reconhecimento oficial. A cultura brasileira não vê qualquer virtude em uma vida fora dos cartórios. A cultura brasileira busca a extrema profundidade. Escrito por Akira Umeda, maio 24, 2013 em 12:46 am

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15
Ago15

Palimpsestos

por Hilton Besnos

Desde sempre me incomoda a realização automática de eventos que visam concentrar o maior número de pessoas e o maior número de atrações (oferecidas sob o discurso de uma duvidosa porém enfatizada diversidade) que ocorrem seguindo uma periodicidade (anual, bienal etc). Evidentemente, há justificativas concretas e plausíveis que levam a este estado de coisas: a dimensão metropolitana, a sociedade de massas, a democratização, a ampliação do acesso, a ideologia do para todos etc, para citar aquelas que são dignas e corretas (pois há as que não coincidem com dignidade nem com correção). Mesmo em cidades pequenas do interior, o automatismo das soluções produzem eventos gigantescos, hiperdimensionados, que efetiva e literalmente são para todos os habitantes destas cidadezinhas, e que ocorrem uma vez na vida e outra na morte. São os chamados festivais, os fests, os megasgigas e teras. Em São José dos Campos, uma cidade de médio porte, há, no âmbito das políticas públicas municipais, o Festidança (que tende a concentrar atrações de dança em uma semana do ano), o Festivale (que tende a concentrar as atrações de teatro em uma semana do ano), além de projetos em parceria com o Governo do Estado de São Paulo que concentram manifestações diversas em períodos de 2 a 4 dias de um ano (Revelando São Paulo, Virada Cultural, Festival da Mantiqueira etc). Assim, automática e gigantescamente, têm sido desenhados os eventos na cidade. Não há grandes questionamentos com relação a esta solução que concentra as manifestações artísticas concretas e isola as possíveis reflexões sobre o campo artístico. Os automatismos não costumam ser questionados; soluções que se manifestam de tal forma programam as mentes e os corpos de forma a não deixar brechas para indagações, tal como ocorria nas antigas linhas de produção fabril. Mas, diferentemente do que ocorria nas fábricas, tal programação de grandes eventos concentrados/isolados não se articulam coerentemente a um propósito claro, ao menos no âmbito das políticas públicas (na seara das iniciativas privadas, tudo se articula em função de ganhos financeiros). Fábricas montam linhas de produção de carros para alimentar e manter viva a necessidade por carros e para se perpetuarem através dos lucros desta ação. Órgãos públicos de cultura e arte montam linhas de produção de eventos gigantescos, concentrados e isolados para quê? As respostas podem ser claras, mas é inegável que há sempre uma névoa pronta para obscurecê-las.A poética (o conjunto de modelos de experiência) do gigantismo, da concentração, do isolamento e da dispersão faz sentido, mas, ao menos para mim, também traz incômodos e evocações históricas e políticas indesejáveis (como as provenientes do nazismo, nos tempos modernos). Há outros modelos (outras poesias) e quero me dedicar a pensar sobre eles, situar-me nos paradoxos. Mas sei que para que este pensamento venha a ser implementado, reconhecido como poesia legível e legítima, as linhas do texto do programa que definem uma verdade inquebrantável e hipnótica necessitam ser reescritas, hackeadas, rasuradas. Palimpsestos.Akira Umeda, 2013.

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15
Ago15

Cultura digital

por Hilton Besnos

 

Na língua inglesa, o termo “Cultura Digital” costuma ser substituído por “Sociedade da Informação” (“Information Society”), que, aparentemente, tem um significado mais claro, apontando para este mundo crivado de informações e por elas constante modelado, remodelado, formado e deformado. Mas vale a pena buscar o significado de “Cultura Digital”, um termo mais viscoso do que aparenta ser. Neste sentido, pode-se tomar uma definição de “Cultura” e uma definição de “Digital”, analisá-las em justaposição e extrair um significado —que, é claro, variará de acordo com as definições de “Cultura” e de “Digital” escolhidas e com as diferentes maneiras de conduzir análises.“Cultura” pode ser definida como aquilo “que é copiado, transformado e, então, enraizado. Ou melhor, todo o processo é, ele próprio, a cultura”, segundo o antropólogo japonês Michitaro Tada.  “Digital” pode ser definido como um código, “em sua maioria do tipo ‘1-0’(…) —ou deixam passar (‘1’) correntes de elétrons ou as interrompem (‘0’) (…) O pensamento que se expressa e que produz imagens por meio dos códigos digitais é uma caricatura do pensamento”, segundo o escritor Vilém Flusser. A justaposição destas duas definições permite várias análises, mas uma definição rudimentar de “Cultura Digital” insinua-se de imediato: é a caricatura do pensamento que é copiada, transformada e enraizada; é o processo que visa simular o pensamento. Por enquanto, a “Cultura Digital” se realiza através da relação física entre o Homem e os diversos aparelhos construídos por ele. Não por acaso, esta relação física se dá principalmente entre a pontas dos dedos de suas mãos (de onde se tiram as impressões digitais), e as variadas superfícies (e não as interioridades, profundidades, o que está dentro) destes aparelhos.Diante desta definição e destas considerações rudimentares, é possível perguntar-se, afinal: qual a importância da “Cultura Digital”? Uma delas, a mais óbvia, é que a “Cultura Digital” intensifica  e generaliza um gesto, um comportamento, um movimento corporal: o uso das pontas dos dedos. Considerando-se que as pontas dos dedos são usadas, cada vez mais, para produzir simulações do pensamento humano em aparelhos diversos, tem-se aí uma importância difícil de subestimar. Na “Cultura Digital” trata-se de espalhar impressões digitais nas superfícies dos aparelhos, o que significa que estas impressões digitais são impressões de pensamentos que se espalham. No contexto da “Cultura Digital”, o mundo é visto como uma enorme superfície cheia de marcas de dedos que, na realidade, são transferências de pensamentos. Não é possível ignorar tal mundo produzido pela “Cultura Digital”.São, por enquanto, caricaturas de pensamentos que vão se disseminando, ou seja, pensamentos mais ou menos imperfeitos. No entanto, a repetição dos gestos da “Cultura Digital” tendem a se tornar mais precisos ao longo do tempo e é possível supor que não está longe o momento em que estes gestos produzirão simulações perfeitas dos pensamentos, quando a marca do dedo será perfeita e claramente lida como um pensamento. Esta “Cultura”, a “Digital”, vem sendo  copiada, transformada e enraizada há muito e, para além dos sérios debates e embates relacionados ao controle da “Cultura Digital”, seja pelos poderes públicos instituídos ou pelos próprios produtores de aparelhos, o que parece importante é que as políticas públicas mais generosas e abertas tenham um olhar para esta Cultura. Isto significa que é importante que as políticas públicas consigam ver as marcas dos dedos espalhadas pela superfície do mundo, reconhecer que elas são pensamentos que proliferam e, acima de tudo, dimensionar-se de tal forma que não configurem instrumentos de controle do pensamento.Akira Umeda, 2013.

 
Escrito por Akira Umedamaio 22, 2013 em 1:32 am

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