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23
Ago15

Miguel, para além de 2003

por Hilton Besnos

Escrito em dezembro de 2003

Por esses dias, no ônibus, meu filho Miguel, de 10 anos, me disse que não gostava da música “Adeus ano velho, feliz ano novo”, porque achava um desrespeito, uma desconsideração com o ano que se foi. Refleti sobre o tema, e realmente o Mig tem razão: é como se desprezássemos 2003, como se de repente, pela passagem do tempo tentássemos esquecer o que de bom aconteceu. Pensei mais, que as nossas histórias, as nossas conquistas, as nossas tristezas, nossos momentos de prazer, de ternura, de afeto e de carinho, toda a nossa vida se constrói no dia-a-dia, através das nossas ações e de nossos pensamentos. O Miguel tem razão, é um desrespeito conosco mesmo e com quem vivemos parte das nossas vidas. Não devemos dar adeus a 2003, mas trazê-lo junto a nós, em nossos cuidados conosco e com as pessoas as quais amamos; em 2004 reconstruamos um 2003 no que de melhor ele teve, especialmente em nossas habilidades para lidarmos com revezes e a sabedoria que cada um de nós acumulou em 2003 e anteriormente.

Muito obrigado Miguel por ter-me ensinado essa lição, e que ela possa iluminar a todos em 2004.

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23
Ago15

O único Hotel que fica sempre lotado no Ano Novo por Anna L. Fischer

 

(No caso, 2011)

Fonte: http://www.flickr.com/search/?q=ano+novo&z=e&page=2

Às vezes a passagem do ano vira clínica: iremos, finalmente, procurar o psicólogo, a psiquiatra, faremos o nosso tão temido exame de próstata, faremos uma lipoaspiração, colocaremos botox, malharemos, teremos não mais que dez por cento do nosso peso corporal transformado em gordura, começaremos um regime rigoroso e check ups serão realizados com a regularidade e com a disciplina de um monge. Às vezes a passagem do ano vira esporte, academia, e então faremos pilates, caminhadas, alongamentos, bike, ball alongamento, experimentaremos swásthya yôga, mesmo jump não está descartado. Às vezes o ano novo vira esporte coletivo, e dê-lhe futebol, volei, basquete, et caterva, ou, quem sabe, tenis, natação, alguns esportes mais individuais. De todo modo, uma coisa é definitiva: na passagem do ano pensamos em nós. Desejamos que a vida do outro seja melhor, e, assim como a passagem do tempo, pretendemos que, por algum desígnio isso se concetize. Nunca ficamos tão exotéricos, tão midiáticos quanto na passagem do ano, não importa de que ano, não importa que idade se tenha. Os desejos de final de ano são sempre individuais, com as devidas concessões às famílias de nossos queridos amigos, parentes, e assim por diante.

Poucas vezes, contudo, pensamos que um objetivo sem plano é apenas desejo. Se esquecemos disso, esquecemos mais ainda de que, como disse com enorme sabedoria minha querida e agora aposentada colega e amiga Ana O., o presente é o futuro de ontem. Sempre pensamos para o que virá, mas poucas vezes nos detemos a imaginar o hoje como o projeto de ontem. Dentro do mundo pontilhista, anárquico, consumista em que vivemos, me vem à mente que talvez um bom projeto para o ano seria nos apoiarmos em três eixos: conhecimento, ética e compartilhamento. Nossos projetos individuais poderiam, assim, ser infinitamente melhores se o outro fizesse parte dele. Se víssemos na palavra parceria um pouco mais que uma proparoxítona, já teríamos algo mais interessante para pensar e tentar organizar. Se abandonássemos um pouco, não muito, só um pouco, nossa compulsão a vaidade irrefletida, já teríamos um ponto de partida, uma referencia para melhorarmos não só o nosso mundo, como o mundo de todos. Isso requer bem mais que projetos individuais. Temos de tentar projetar nossas ações como em rede, onde há uma partilha, uma co-participação do outro, daquele mesmo outro que, inúmeras vezes ignoramos ou fingimos ignorar.

Talvez esse seja o principal projeto do ano novo: usar o nosso conhecimento, a nossa ética e o nosso sentido de compartilhamente como se fosse uma bandeira a ser empunhada. Realmente nos importarmos e nos envolvermos com algo maior do que implantar botox ou silicone ou praticar pilates. Não que isso não tenha sua relevãncia, e, afinal, ter uma consciência dentro de um mundo midiaticamente espetaculoso não é tarefa fácil. De todo modo, não vou fugir à regra: um bom ano novo, e, especialmente, um novo ano novo. Não apenas quantitativo, mas qualitativo, portanto, realmente um novo ano novo. HILTON BESNOS

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23
Ago15

Ana Paula Umeda e Atget

por Hilton Besnos

 

 

 

 

Para Ana Paula Umeda

Eugene Atget. Quem de nós, simples mortais, já ouviu falar dele? Provavelmente vimos algumas das cerca de dez mil fotos com as quais nos brindou a arte deste francês nascido em Libourne, França, no ano de 1857 e falecido em 1927. Passou vinte e cinco anos fotografando a Paris do final do século, criando uma coleção sólida e coerente. Uma obra uirbana. Quando morreu, só e abandonado, apenas um ano antes seu talendo havia sido descoberto.

Quem vê as fotos de Atget vai às raias das reminiscências, é como se estivessemos vivendo a Belle Èpoque ou como se Edith Piaff ou Carlitos fossem aparecer em algum daqueles cenários, cheios de lirismo, poesia e dramaticidade. As cidades, como os homens, se modificam, e isso podemos perceber claramente vendo e especialmente refletindo sobre a obra de Atget.

A sensibilidade da câmara não acontece sozinha, e não sei exatamente porque Atget me lembra um pouco da dramaticidade cotidiana de Buenos Aires. Há muito de tango nas suas fotos, há toda uma extensa releitura que pode ser efetivada a partir das imagens captadas pelo artista. Há, ali, um pouco da alma francesa, das suas desilusões, das suas desventuras, do seu povo pobre mesclado em uma história de dor mas de intenso orgulho. Há muito de Piaff.

A arte de fotografar as cidades, de colher seus aspectos mais intrigantes diz respeito, em meu entender, com a possibilidade não apenas de captar um documentário, mas um cenário real onde as pessoas se encontram, se desencontram, cruzam entre si sem se olharem, com o fluir da massa, com a fixação de um conceito próprio que tem a ver com a cultura da cidade.  São Paulo, por exemplo, é uma cidade? Não, é muito mais do que isso, é uma concretude que envolve uma cultura moldada por cidadãos de todo o mundo, de gente que buscou aqui o que muitos buscaram em Nova York, em Paris, em Londres. São Paulo não é uma megalópole porque é uma cidade quase ilimitada, mas pelo acolhimento à multietnia, aos costumes, às ideologias que, entrecruzadas, foram dando um rosto, um cenário, uma vocação, nichos de cidadãos, onde se mistura o absurdamente rico e o miserável, famílias que migraram do Japão, da Europa, da América Latina e que foram construindo uma arquitetura social, econômica, financeira e humana.

Uma rede fantástica criada a partir da cotidianeidade, das dificuldades, das línguas tão distantes do nosso português. A história das cidades me fascina, mas não estritamente do ponto de vista histórico e documental, mas também do ponto de vista da ficção, das irrestritas possibilidades que temos de aprender sobre e com o outro. Aprender muito mais do que a escola ensina; aprender sobre a vida.

Há um tempo atrás, recebi um comentário de Ana Paula Umeda e a partir daí, fui conhecendo sua obra fotográfica. Então resolvi escrever aqui, porque a sua arte me levou a buscar saber quem era Eugene Atget e, de repente, meu inconsciente impulsionou-me para uma Paris que só conheço de filmes, todos eles antigos mas geniais. A arte de Ana Paula Umeda me mostrou uma São Paulo que eu amo e que já trilhei; sua sensibilidade homenageia Atget, e isso fica claro nas sua fotos.

Que bom que pude conhecer, através do BLOG DO BESNOS Ana Paula e Eugene Atget. Essa a arte da aprendizagem, que nos leva a sermos mais sensíveis, mais solidários e, especialmente, de podermos compartilhar o que, pelo talento, deve ser compartilhado. HILTON BESNOS

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23
Ago15

Utopia pós-feriadão

por Hilton Besnos

EM 2011

Após um feriadão que iniciou no dia 09, estamos retornando ao trabalho hoje. Pois bem, aqueles professores que tem um dia de folga nas quartas-feiras, não trabalham desde o dia 08 (hoje é treze de abril). Convenhamos: é um senhor feriadão, para todos os gostos. No mínimo dos mínimos, quatro dias sem ir para a escola. Pois hoje, bem no início da manhã, por volta das 7 h 35, o que mais escuto na sala dos professores são reclamações. O feriadão foi curto – Ah, que inferno ter de começar tudo de novo – Não gosto de feriado porque perco meu ritmo de trabalho – Hoje quando me levantei e vi que tinha de ir à escola, me estragou o dia – Como foi bom ficar longe daquelas pragas – e assim por diante.

Não é um bom modo de iniciar uma volta de feriado, mas o que escrevi acima não ocorre somente nos retornos. Se você pensar que dali a minutos estará em sala de aula, ensinando adolescentes, terá claramente que esses comentários não levam a nada e que, além disso não existe, nesses professores nada mais além do ranço e do que entendem ser uma obrigação (lecionar), um ônus, um peso enorme a ser sustentado em seus ombros. Reclamam do próprio ofício, bem como de seus alunos o que não melhora a sua relação com o seu fazer profissional. Se não me engano, Confúcio disse: “escolha um trabalho que ama e não terá de trabalhar um único dia em sua vida”.

É claro que talvez alguns dos leitores pense que estou exagerando: é possível, se pensarmos somente na situação descrita; aliás, é bem possível que pense assim. Ocorre que isso é um padrão, uma linguagem já incorporada, uma tábua de argumentação negativa na qual muitos dos meus colegas se apoiam. Dar aulas não é prazer, acaba se transformando em uma tortura. Quando interiorizamos tal padrão, passamos a ser instáveis, infelizes, sonhando com um oásis como se sonhar fosse suficiente.

José Saramago, convidado para o Fórum Social Mundial de Porto Alegre, cujo tema era “A utopia é possível”, confessou que não gostava desse termo, utopia e que portanto, estava na contramão do evento. Disse Saramago que a idéia de utopia era paralisante e que, antes de sonharmos, teríamos que enfrentar as realidades e que ela própria, utopia, dependia menos de recursos retóricos e mais de ação. Fazendo uma analogia, de que adianta sonharmos e especialmente nos estressarmos se o local onde trabalhamos ou os nossos alunos não são nem de longe os sujeitos cognitivos que pregava Piaget, enquanto fazia suas observações tão aplaudidas entre crianças suíças de classe média e alta?

Será que merecemos nos desgastar bem mais do que o que já fizemos? Será que ainda somos tão dependentes do pensamento mágico que falava Freire ou será que elegemos o caminho da permanente reclamação como o melhor a ser seguido? Tenho a impressão de que Saramago nos socorre de modo bastante eficaz, assim como Confúcio já o tinha feito séculos antes de Cristo nascer. Do mesmo modo, parece que esquecemos nossa capacidade de ouvir, e mesmo de ficarmos quietos, atentos, o que reduz enormemente outras habilidades.

De toda forma, você pode optar por buscar realizar a utopia ou ficar reclamando na espera que o seu circuito interno queime de vez. É bom não esquecer que, ao contrário do que muitos pensam, não é a razão que nos comanda, mas nossos sentimentos e emoções (a parte submersa do iceberg, que é bem maior que a emersa). Reclamar é o mesmo que buzinar em um engarrafamento. Enquanto pensamos sobre isso, talvez devêssemos sossegar nossas idiossincrasias e raivas e melhorar um pouco mais o ambiente geral, exercitando nossa gentileza, nosso bom humor e nossa inteligência emocional, o que seria bem melhor do que envenená-lo com nossas neuroses e achaques pessoais. HILTON BESNOS

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23
Ago15

Bauman e o enxame

por Hilton Besnos

Um dos conceitos que Bauman analisa no livro Vida para Consumo, Zahar Ed. é o de enxame. Enxames não são “equipes, não conhecem a divisão do trabalho. São … agregados de unidades dotadas de autopropulsão, unidas unicamente, … pela ‘solidariedade mecânica’, manifestada na reprodução de padrões de comportamento semelhantes e se movendo numa direção similar”. E segue: ” Os enxames, de maneira distinta dos bgrupos, não conhecem dissidentes nem rebeldes – apenas, por assim dizer, ‘desertores’, ‘incompetentes’ e ‘ovelhas desgarradas’. As unidades que se desviam do corpo principal durante o vôo apenas ‘ficaram para trás’, ‘perderam-se’ ou caíram pelo caminho'”. E finda Bauman: “Num enxame não há intercâmbio, cooperação ou complementaridade – apenas a proximidade física e a direção toscamente coordenado do movimento atual”.

Ora, se ao conceito de enxame acrescentarmos a definição de panóptico – uma central de controle e portanto de poder e de vigilância social onde o observado tem sempre seu comportamento, suas ações e/ou inações contabilizadas e registradas em um bando de dados, que debita desvalias e credita conveniências, poderemos chegar ao entendimento do que eu entendo de desconforto, no mais das vezes profissional.

Pessoalmente sempre priorizei a inteligência interpessoal – embora não seja um descurado técnico – o que é uma forma de arte. Divorciado de um comportamento gestor, embora saiba de suas imensas aplicabilidades, sobretudo práticas, busquei na maior parte das vezes alternativas humanas ao entrar em contacto com terceiros (pessoas físicas e/ou instituições), o que nem sempre devo ter feito com a eficiência ou eficácia desejadas. O direito me ensinou que tratar desiguais como iguais e iguais como desiguais é uma injustiça valorativa, não raro difícil de reparar. No entanto, também aprendi que o amesquinhar-se, o mediocrizar-se pode ser um belo mimetismo que muda ao sabor das pretensões individuais.

Enxames não toleram desgarrados como eu. É claro que isso não é explícito, mas o enxame entende conveniente, desejável que eu me submeta a determinados comportamentos que foram naturalizados em nível de gestão. É adequado, por exemplo, comparecer a um evento após ter lecionado uma tarde toda, e tendo duas horas de descanso, exatamente da maneira que saí da sala de aula, porque o único sentido é cumprir o ritual de fazer número em meio ao enxame. Fica, portanto, desagradável que eu faça diferente e que resolva ir para casa tomar um banho e dirigir-me para o evento. A diferença sutil é que, em assim agindo, eu não permito que a rainha-mãe do enxame me controle exatamente. Como vai poder saber exatamente onde estou, em que lugar fiquei, como mapear alguém fora do enxame? Como poderá, oh rainha-mãe, contabilizar tal gesto?

Ah, sim, tratou-se de um evento internacional de educação, envolvendo centenas e centenas de educadores, portanto muita gente, e, infelizmente, eu não estava abaixo das asas da rainha-mãe. Tsk tsk tsk..

Quando desenvolvemos uma interface com a realidade e não tememos o afastamento do enxame, corremos o risco de sermos, concretamente aquele ser perdido que Bauman analisou. No entanto, a reflexão é:  precisamos estar no burburinho, no bater das asas do enxame? Isso é tão fundamental? É tão importante seguirmos os rituais prescritos, sermos tão adaptáveis até chegarmos ao ponto de não nos reconhecermos? Quando Bauman brilhantemente nos mostra questões sociais de convivência humana como seus conceitos de liquidez, não estará nos impelindo a pensarmos sobre as questões identitárias, ou, falando de outro modo, de como podermos fazer para não sermos nós mesmos, mercadorias?

Diz a sapiência: não basta sermos virtuosos, temos de parecer virtuosos. Em alguma situações, como as que se tratam de ritualizar e de naturalizar conceitos, é mais que necessário parecer virtuoso. Sempre é bom portar a previsibilidade, a acomodação, o achismo, e – jamais esquecer! – dos controles sob a forma de papéis, relatórios, atas e demais cornucópia que deve estar a disposição para os momentos mais cruentos. O papel prova, a palavra não! HILTON BESNOS

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23
Ago15

O bom e o ruim

por Hilton Besnos

Eu sou daqueles que não acreditam na inexistência de boas notícias a serem divulgadas. No entanto, parece que ando, como sempre, na contramão. Sem dúvida, muito mais coisas ruins transbordam do que um mínimo de sanidade, bom senso e, por que não dizer, de humanidade. A exploração do que é pior é de tal modo constrangedor que nos coloca sempre em alerta, de modo tal que ver o Outro como um perigo iminente é totalmente plausível e, mais que isso, esperável.

Vivemos em uma época na qual o que nos dizem, e não subliminarmente, é que pessoas desconhecidas são perigosas, quase que naturalizando relações que poderiam se transformar em belezas na feiura da desconfiança mútua, da traição e da estupidez. Talvez possamos, então, nos divertir mais se ficássemos sós, comprando, comprando e comprando. Pela televisão, por exemplo (canais abertos, que são disponíveis à massa informe), devo ficar em casa, me alimento mal, tenho maus hábitos de saúde, leio pouco, e a violência deve me acompanhar vinte e quatro horas por dia. São estupros, escândalos, ameaças, corrupções, e mais todo o elenco de maldades de tal forma explicitadas e replicadas que, realmente, devo me mudar para uma ilha.

Mas mudar não tem muito sentido, de vez em quando. Talvez o belo e nobre cultivo das amizades seja uma boa alternativa. Estou tentando caminhar por aí. HILTON BESNOS

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23
Ago15

Perene e sólido: passado

por Hilton Besnos

Fumaça vermelha 1024x768 Papel de Parede Wallpaper

Não há o que seja perene, estável e sólido na atualidade. Chega a ser insólito quando alguém diz pretender algo “para o resto da vida”. Vivemos em interrupções e movimentos constantes, e no mais das vezes não nos damos conta disso, porque as rotinas nos engolem. Cada vez menos descobrimos nesgas de tempo para ler, namorar, assistirmos a um filme ou, simplesmente, refletir. Parecemos presos a um processo que nos deglute, nos elimina e nos recicla diariamente, de modo impessoal e sem um rosto definido. Não nos reconhecemos no outro e vivemos em uma situação de descarte permanente, seja dos bens que adquirimos para cunharmos identidades tão vãs quanto uma passagem de estação, seja das relações tíbias que construímos com base em interesses menores.  Nossos umbigos nos guiam, pois fomos miseravelmente induzidos à apatia do pensamento e à ação sem matutarmos, sem elaborarmos razões, sentidos e porquês. Somos lesados a partir das nossas ignorâncias, medos, tristezas e pensamos que a ausência de afeto e de presença física pode ser suprida com consumismo alienante, culpas infundadas e um sentido irracional de urgência.
Confundimos liberdade com escolhas, com conveniências. Liberdade é não precisarmos escolher em um mundo consumista, é nos sabermos conscientes de que podemos até ser excluídos por grupos de interesse, mas exercermos o direito de não optarmos pelo fácil, pelo efêmero, pela conversinha ranzinza e depreciativa que tantas vezes nos envolve, é nos alhearmos um pouco dos sentidos e dos sentimentos mesquinhos, das coisinhas medíocres do dia-a-dia. Liberdade é o não-alinhamento compulsivo, compulsório junto à massa pasteurizada com a qual temos de forçosamente conviver, seja no trabalho, seja em algum movimento político ou religioso. Mais: é perguntarmos ao outro porque ele quer saber algo, é não estarmos na conformidade, mesmo sabendo que estamos criando em nosso entorno um sentido de estranhamento. 
Somos considerados estranhos, exógenos quando não seguimos padrões estruturados e dados como normalizados; quando as nossas respostas (e especialmente as nossas perguntas) não são as esperadas e fazemos questão de afirmar por gestos, por palavras e por atitudes que somos inteligentes e dotados de emoção e em razão disso nos negarmos a seguir o caminho que antecipadamente nos traçaram, preferindo conhecer outras estradas. Somos estrangeiros dentro de uma mesma língua quando sabemos mais palavras que a média, quando perguntamos o que a média custa ou não quer responder, ou quando calamos no momento em que a maioria aplaude por mera conveniência. Somos estrangeiros dentro de um comportamento quando terceiros esperam que façamos algo e não o fazemos porque duvidamos intimamente que seja o melhor a fazer. E por fim somos estrangeiros quando nos arriscamos onde a maioria prefere o conforto. Isso não significa que somos livres, mas que refletimos onde os outros não o fazem, ou porque cansaram de pensar ou porque tem interesses menores a zelar com a proficiência de um apóstolo. 
O sólido se desmancha no ar, como disse Kundera, mas ainda encontramos por aí muitas construções barrocas e dentro delas imagens de uma época que igualmente se desvanece. O desespero que se segue é enorme, porque o sólido implica em um planejamento em longo prazo, demanda renúncias pessoais, adia os momentos aprazíveis, aguardados muitas vezes por um tempo maior do que seria possível suportar. Em seu lugar surge a insegurança, o imediato, o que não deixa rastros, o que se isola em sua individualidade. Desaparecem os guerreiros porque não há mais lutas, somem os ideólogos porque os pensamentos são vistos como algo informe e incômodo, não há mais perenidade porque o efêmero nos acorda no dia-a-dia, nos fogs dos noticiários e na indiferença blasé em relação a tudo e a todos. 
Enquanto isso o homo faber nos persegue, sitia, e emula, erguendo seu panóptico a cercar-nos, a manipular-nos, a dizer a todo o momento que as nossas possíveis inconveniências podem ser punidas, registradas, analisadas, discutidas, resumidas em um livro ata, em uma ocorrência, em uma manifestação de repúdio comandada pela ampulheta e que os nossos sentidos e sentimentos são um nada diante do que se avizinha. As capas da conveniência se abrem e talvez somente aí possamos perscrutar, mesmo que minimamente, os dentes da fera que vai nos morder. Constatamos tristemente que nossos esforços de maior socialização restaram frustrados e que, afinal, amealhamos poucos apoios em relação ao que buscávamos. O sólido se desmancha no ar e a nossa tentativa de buscarmos um pouco de historicidade se perdeu em um tempo pontilhista no qual não há links possíveis ante uma tela que se projeta infinitamente sobre si mesma. 
Somos humanos, mas, claro!, alguns são mais humanitários, solidários que outros, se importam mais, pretendem que os relacionamentos possam substituir o temperamento do aço, a psicologia do tijolo, a atenção da hulha. E aí se constata que não adianta dizer ao homo faber: “Olha, escuta, isso tudo não existe mais, você faz parte de um mundo que se esboroa, você é o passado e, deste, o pior, o incompreensivo e o opressor operador de máquina”. Mas isso não adiantará em nada, pois a burguesia da revolução francesa pensava com os mesmos parâmetros que o campesino sem capital da idade média. 
O homo faber irá se desconstituir na medida em que seus sensores o avisarem de que está em plena marcha a sua obsolescência e somente aí ele desistirá de morder, de plantar seus dentes em nossas gargantas. Talvez essa seja nossa recompensa maior e talvez a única: sabermos que temos consciência do lugar, do espaço e do tempo em que vivemos. Se nosso pensar não nos isenta, pelo menos nossa ignorância não nos embala e põe a dormir. Ser inconveniente, afinal, pode ser muito gratificante. HILTON BESNOS

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23
Ago15

Trabalhar enobrece, não é?

por Hilton Besnos

Só é obrigação o que não nos interessa; o mundo do trabalho é prenhe de coisas a fazer, de pouco tempo para fazê-las e de chatices inexpugnáveis. É claro que podemos ter muito prazer no que fazemos, podemos realizar muito, mas sempre temos alguém ou alguma instância que nos criteriza o que deve ser feito. Normalmente as compensações pessoais dizem respeito a como ou de que modo realizamos nossas atividades, mas isso não invalida sabermos que o mundo do trabalho é um mundo contratual, pactuado, com regras mais ou menos fixas e que, dependendo do que fizermos, segue um modus fascendi industrial.

A atividade regida pela industrialização é onerosa à nossa saúde, aumenta nosso estresse, nos põe em convívios que gostaríamos de evitar e nos escraviza ao relógio. Contamos os dias para as férias e, normalmente, não sabemos o que fazer com elas, senão nos prepararmos para mais um ano de estresse. Descansamos o suficiente para começarmos de novo, e nos desorientamos minimamente em relação à bússola que sempre aponta as mesmas rotinas. Por isso, essa desorientação é extremamente benéfica à nossa saúde. Se não à física, com certeza, à mental.

Nos horários de intervalo de nossas atividades do que falamos, sobre o que pensamos? Sobre as mesmas atividades, os mesmos serviços, os mesmos problemas. Se não fazemos isso de modo voluntário (ou involuntário, dada a rotina das nossas ocupações), sempre haverá alguém a nos lembrar. Um diretor, um supervisor, um orientador, um chefe, um colega.

Vivemos uma vida na qual o trabalho, muitas vezes opressivo, é nosso mais caro e mais estimado valor. Há workaholics por todo lado nos lembrando, nos alertando, nos dizendo, nos insinuando a respeito do que temos de fazer, do que deveríamos ter feito, do que foi feito de modo errado ou das nossas omissões. Tão certo quanto o sol nasce e se põe, sempre haverá alguém a nos lembrar, a nos martelar impiedosamente, a anotar, a registrar com uma memória implacável as nossas obrigações.

A essas pessoas, chamamos de responsáveis.

Nas escolas, um dos ambientes mais insalubres que conheço, há, além disso, o fenômeno da circularidade. No mais das vezes as conversas são sobre os mesmos assuntos. Como se trata de um mundo feminino e as mulheres são socialmente injustiçadas, há um sentimento de culpa que perpassa tudo. Há professoras que querem ser mães de seus alunos, e o caminho óbvio para isso é a subjetivação elevada a seus píncaros.

Por outro lado, a tão declarada objetividade masculina se perde entre tais culpas, se debate entre problemas caseiros e o psicologismo, não raro utilizado como bandeira ideológica.

O matriarcado sufoca o profissionalismo, especialmente se não houver um esforço bastante grande quanto à qualificação do corpo docente. No mais se troca a teoria pela empiria e o objetivo pelo subjetivo. Ao analisarmos uma questão objetiva, outras entram em foco: “mas o aluno tem problemas na família”, “ele foi mal, mas tem potencial”, “ele só está pensando em namoro”, “o pai dele é alcoólatra”, e assim por diante. E tudo vira um enorme bazar, onde o conhecimento é barganhado em relação ao psicologismo de araque e ao serviço social de duvidosa qualidade.

Duas situações:

Primeira. Há mais de quinze anos atrás, em aula em uma escola do município, uma professora me falou que não estava mais suportando a falta de profissionalismo e o caráter de improvisação e de precariedade da referida escola. Disse-me que, para ela, era inviável continuar lecionando em tal escola, porque entendia que o profissionalismo e a qualificação deveriam ser levados a sério. Dois meses após tal conversa, ela se exonerou. Ela havia ingressado por concurso público, e foi coerente com seu próprio sentimento, com seu sentido enquanto educadora. Ponto.

Segunda. Ano passado havia vários alunos na escola onde leciono que tinham visivelmente problemas psicológicos graves. O serviço de orientação escolar tentou encaminhá-los para uma instituição social que atende adolescentes em situação semelhante àqueles que a escola encaminhou. Aí simplesmente a instituição devolve para a escola o seguinte argumento: não podemos atender todos, então a escola deve escolher aqueles casos mais graves e nos encaminhar. Ora, escola não é serviço psicológico nem psiquiátrico nem hospital. Pergunta-se como pode a escola decidir nesses casos? Não pode, não é? Simplesmente não pode. Ponto.

As duas situações mostram como se lida com questões profissionais. Na primeira há coerência entre discurso e fala, entre comportamento e ação. Na segunda há uma situação que beira a mais rematada irresponsabilidade. Entre esses dois pólos a escola se debate, e o estresse provocado por situações díspares atravessa no dia-a-dia as atividades de quem ensina e de quem aprende.

Questões como essas faz com que pensemos em nossas atividades, praticamente todo o tempo. São angústias, temores, desconfortos com os quais temos de lidar e não sabemos como iremos reagir aos mesmos. É, portanto, indispensável que saiamos de vez em quando para reativar nossas baterias, talvez não o suficiente para enfrentar tais batalhas do dia a dia contratual que todos vivemos, imersos em uma sociedade que cobra o tempo todo e que proporcionalmente devolve poucos prazeres.

Vivemos em ambientes totalmente mapeados e instáveis a partir de estruturas que podem ser mais flexíveis ou mais rígidas. É necessário sair um pouco disso, antes que o workaholic mais próximo nos fatie e nos jogue dentro do seu mar de obrigações.HILTON BESNOS

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23
Ago15

What goes up

por Hilton Besnos

 

Estamos, no vídeo acima, observando um cenário tão habitual mas, ao mesmo tempo, tão incrivelmente desconhecido, que beira ao desconforto. O que sabemos sobre o mundo do petróleo é jogado para os nossos universos micro, o quanto pagamos de gasolina no posto, qual vai ser o percentual de aumento sobre os produtos e os impactos sobre o custo de vida, a cesta básica, etc. Sabemos, por exemplo, das  notícias  sempre aflitivas de conflitos em zonas produtoras, enfim um caos que mereceria uma compreensão maior de nós todos, simples mortais. Basta pensarmos no pré-sal. o que sabemos? O que nos dizem, e é só, ou seja, o jornalismo é que nos mantém sabedores do que, evidentemente, interessa que saibamos.

Quando se fala em petróleo, se fala igualmente que não é uma fonte renovável de energia e, menos ainda, uma fonte limpa ou ecológica de energia. Um documentário informou que, após a idade do carvão como matriz mundial energética, o mesmo foi substituído pelo petróleo, mas que não existe qualquer outra fonte que o suceda. O mundo inteligente se volta, então, para as energias limpas, como a eólica e a solar, por exemplo, mas o fim do petróleo decretará consigo o fim de uma época importante para toda a humanidade.

Por outro lado, falar em petróleo é também pensar do ponto de vista cultural, social, antropológico, de exploração tecnológica e, não raro, pensar em guerras de dominação econômica e que se camuflam convenientemente sob o non-sense ideológico. De todo modo, o filme acima é uma preciosidade, e pode ser analisado sob vários ângulos que denunciam, cada um a seu modo, a predação e a tolice civilizatória de jogarmos todas as nossas fichas em apenas uma grande, mas finita, matriz energética.

Também nos alerta sob o fato de que teríamos de investir firmemente em processos alternativos energéticos, e, quem sabe, olharmos para a natureza com olhos distintos daqueles com que a observamos, sob cobiça, exploração de recursos não renováveis e pura e simples destruição para a sangrarmos com a pretensão de lucros cada vez  maiores. Talvez aprendamos com o petróleo, ou com seu ciclo, que somos parte planetária, e que a natureza, gostemos ou não, reage a cada absurdo que cometemos. Nós somos os passageiros, mas não comandamos o que nos transporta.

O vídeo nos ensina. Sejamos humildes, aprendamos um pouquinho, um ínfimo que seja. HILTON BESNOS

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FONTE: BLOG INFOPETRO

http://infopetro.wordpress.com/2012/03/19/observatorio-de-geopolitica-da-energia-ii-o-jogo-do-gas-natural-entre-europa-e-russia/

 

Observatório de geopolítica da energia II: o jogo do gás natural entre Europa e Rússia

In gás natural on 19/03/2012 at 00:15

Por Renato Queiroz e Felipe Imperiano

 

 

O acesso  a recursos que revertam em  segurança energética  constitui-se em tema relevante nas pautas de política externa dos países. A concentração espacial de recursos naturais estratégicos para o desenvolvimento das nações e garantidores do nível de bem-estar de seus cidadãos tem consequências profundas no delineamento das políticas energéticas das nações. O uso de ativos energéticos como ferramenta de defesa de interesses políticos e econômicos não é algo novo no cenário internacional.

Um bom exemplo que se tornou emblemático para os estudiosos em geopolítica energética é a situação de dependência da Europa em relação ao  gás russo e, em contrapartida, como o gás natural é estratégico para o desenvolvimento econômico da Rússia. O Estado russo sempre se valeu de suas enormes reservas de óleo e gás. O país tem a sétima maior reserva de petróleo do mundo e a maior reserva de gás natural, isto é, 24% do total.  Em 2010 a Rússia foi ao mesmo tempo maior produtor de gás natural, alcançando a cifra de 637 bcm (bilhões de metros cúbicos), isto é, 19,4% do total produzido mundialmente, sendo ao mesmo tempo o número um em exportações (IEA, 2011).

A  Europa, ávida por energia, traçou planos para o suprimento ao seu mercado através de fontes longínquas de suas fronteiras. Os russos se mobilizaram e vieram construindo de forma gradual e persistente seus oleodutos e gasodutos em direção à Europa. A Rússia tem um planejamento nacional estratégico expansionista, baseado em  exportação de energia sendo, inclusive, o único exportador líquido de energia dos BRIC´s. O principal mercado para o gás russo é a Europa.

Como o crescimento do consumo de gás no continente europeu deve permanecer por longo período, essa dependência energética da Rússia deve ter vida longa segundo muitos analistas. A fatia da estatal russa Gazprom  no mercado europeu ultrapassa 50%.  Agravando essa dependência, surge a insegurança que ronda as decisões sobre o uso de plantas de geração de energia nuclear na Europa, o que coloca o gás natural como uma forte opção para atender a uma oferta perdida. Em adição, a crise econômica iniciada em 2011 deflagrou um processo de austeridade fiscal, o qual traz consequências importantes sobre a capacidade de financiamento de fontes alternativas de energia,  aumentando ainda mais a dependência da matriz europeia  ao  gás natural.  Logo, essa questão ganha contornos mais complexos no continente europeu, posto que o seu número de fornecedores é bastante reduzido.

Os russos sempre utilizaram as mais diversas estratégias para manterem seus negócios energéticos com a Europa. O subsídio da energia para os estados membros da antiga URSS já era uma prática comum antes mesmo da ascensão ao poder de Vladmir Putin na Rússia, por exemplo. Ainda hoje esse artifício é bastante usado pelo Kremlin. Nas recentes disputas pelo preço do gás com os países do leste europeu, foi oferecido o perdão da dívida em troca do monopólio da rede de dutos que passam por aqueles países para levar gás russo até o oeste europeu e assim aumentar o controle da Gazprom sobre o transporte do suprimento energético para a Europa.

Por um lado, se a Europa é bem dependente da energia proveniente da Rússia, por outro ela exerce importante papel na economia russa. A União Europeia não só é o principal parceiro comercial, como também a maior fonte de investimento direto estrangeiro (IDE) no país. Em 2008 o IDE da UE na Rússia atingiu US$ 43 bilhões, sofrendo uma substancial queda após a crise financeira mundial, porém se recuperando rapidamente e chegando ao patamar de US$ 34 bi já em 2010. Mas há gargalos de infraestrutura e de atraso tecnológico na Rússia.  O país necessita de fortes investimentos nessas áreas e de transferência  de  know-how ocidental, vital para que o seu setor energético não enfrente uma queda na produção, o que poderia afetar drasticamente o orçamento do Estado. Assim, o fluxo de recursos financeiros provenientes das vendas de gás para a Europa é vital.

Além disso, o preço pago pelo gás russo teve consideráveis elevações nos últimos anos,  aproximando-o do Gás Natural Liquefeito-GNL, o que fez com que este se tornasse mais competitivo. O gráfico abaixo apresenta a evolução dos preços do gás natural nos mercados, incluindo o do gás natural no Henry Hub.

Tal competitividade levou a Rússia a monitorar atentamente o mercado de GNL, desenvolvendo estratégias que impeçam que esse gás concorrente aumente a sua  participação no mercado energético europeu.  Como exemplo, em novembro de 2011, em Doha, no Qatar, na  1ª Cúpula de Países Exportadores de Gás Natural [1], os russos, representados pelo seu presidente Dmitri Medvedev, estiveram nessa cimeira com uma posição de defender seu mercado de gás. Afinal a expansão das plantas de GNL é uma forte ameaça para a manutenção do marketshare russo, podendo levar a uma perda de receita significativa.  A Rússia, assim, negociou com o Qatar, em troca de não aumentar o  fornecimento de GNL à Europa, o direito de investir no projeto Yamal que vai produzir gás natural liquefeito na península de mesmo nome  na Sibéria, uma espécie de embargo do GNL ao velho continente.

A Europa, no entanto, busca soluções de novas fontes de fornecimento de gás fora da Rússia. A região do Cáucaso e da Ásia Central se tornou a nova fronteira energética, sendo alvo de disputa por diversas potências. O Turcomenistão tem a quarta maior reserva de gás do mundo, o Cazaquistão a nona maior de petróleo. O Azerbaijão tem  reservas de gás comprovadas que totalizam cerca de 2,6 trilhões de metros cúbicos.  As perspectivas de  produção de gás no Azerbaijão em 2017 atingirão 30 bilhões de metros cúbicos,  e em 2025 – 50 bilhões. A Europa tem no “Corredor do Sul”, como é chamado o conjunto de projetos que pretendem ligar a região ao continente europeu, a sua principal alternativa para reverter o quadro delicado em que se encontra no campo energético.

O gasoduto Nabucco, por exemplo, é o projeto mais ambicioso e mais caro de todos. A base prevista de recursos são as reservas no Azerbaijão e Turcomenistão.  Esse  gasoduto transportaria gás da Ásia Central à Europa de forma a reduzir a dependência da energia russa. Há dificuldades ainda para a concretização do projeto. O gasoduto de grande extensão necessita de cerca de 14 bilhões de euros para o seu financiamento e  tem ainda um traçado que exige difíceis acomodações políticas. Essa indefinição faz com que os russos mantenham a determinação de influenciar o mercado europeu de energia.

Historicamente a região do Cáucaso e Ásia Central esteve sobre a égide russa. Logo, Moscou lança mão de todas as táticas para  manter a área dentro de seu controle político,  buscando inclusive estabelecer ações, para que  os fluxos de energia para a Europa sigam pela sua rede de transporte. Uma das manobras russas é enfraquecer o poder dos ucranianos que tem um histórico de colocar empecilhos técnicos e comerciais,  para que o gás russo, que passa pela Ucrânia, chegue à Europa. A Rússia, assim, buscou acabar com a sua dependência em relação ao gasoduto da Ucrânia. O projeto russo-alemão Nord Stream,  inaugurado em 2011, dá condições à Rússia de enviar gás natural diretamente para a Europa através de gasodutos submarinos construídos no Mar Báltico. Outra estratégia dos russos seria a construção do projeto South Stream nas águas territoriais turcas no Mar Negro. A Turquia já autorizou que os russos passassem o duto por suas águas territoriais. Esse projeto, se consolidado, permitirá que a Rússia atinja o sudeste europeu, podendo inviabilizar o projeto Nabucco.

Verifica-se que os russos estão acelerando suas ações para manter a condição de fornecedor principal de gás à Europa, afinal, além do GNL, um novo e forte concorrente bate à porta, querendo  entrar no jogo: o shale gás, ou seja, o gás recuperável nas rochas de xisto. Vale ressaltar que a Polônia, que se organiza para explorar  suas reservas de gás de xisto que beiram 5,0 trilhões de metros cúbicos,  pode reduzir a dependência de Moscou sobre a Europa.

O jogo do gás natural entre Europa e Rússia trará, no médio prazo, novas configurações. O aumento da oferta do gás natural seja convencional, shale gás, ou GNL mexerá no tabuleiro energético não somente da Ásia e Europa, mas também no âmbito mundial. Um dado curioso é comparar as reservas provadas de gás convencional que somam 6.608 trilhões de pés cúbicos-TCF( trillion cubic feet) ou seja,  cerca de 187 trilhões de metros cúbicos, segundo a BP,  e o volume de shale gas recuperável,  conforme estudo da EIA de 2011, que soma o mesmo nível do convencional, 6.620 TCF ou 187,4 trilhões de metros cúbicos.

Em suma a maior oferta de gás trará um alinhamento dos mercados. Esse cenário de gás abundante no horizonte de 20 a 40 anos (2030 a 2050) influenciará, certamente, os preços dos combustíveis fósseis e pode, inclusive, respingar no mercado das energias renováveis.


[1] A 1ª Cúpula de Países Exportadores de Gás Natural reuniu  Rússia, Argélia, Bolívia, Venezuela, Egito, Irã, Qatar, Líbia, Nigéria, Guiné Equatorial e Trinidad e Tobago. Estavam presentes como observadores a Holanda, a Noruega e o Cazaquistão. Esses 14 países controlam 70% das reservas mundiais de gás e mais de 80% da produção do gás natural liquefeito-GNL

Referencias Bibliográficas

BP Statistical Review of World Energy, 2011

IEA World Energy Outlook, 2011

EIA-DOE World  Shale Gas Resources: An Initial Assessment of 14 Regions Outside

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